Estados Unidos: expressão do Logos ou da barbárie?
O mundo todo vem assistindo às insistentes ameaças de ataque ao Iraque pelos Estados Unidos, repetindo, mais uma vez, a atitude que, há décadas, os Estados Unidos da América têm tido em relação à países economicamente mais fracos. Para tornar ainda mais nitente a arrogância americana, a nova lei de Segurança Nacional encaminhada ao Congresso pelo presidente George W. Bush prevê que os Estados Unidos poderão invadir qualquer país sem a prévia autorização da ONU, desde que entendam que estão sendo ameaçados.
Vimos que a história é mesmo feita de vai e vem, pois o mesmo princípio da Guerra justa aplicado contra os povos ameríndios no passado, agora é utilizado contra todo o mundo mais fraco. O curioso é que, nos tempos da Guerra fria contra a URSS, quando esta se impunha como potência bélica mundial, num pé de igualdade com os Estados Unidos, jamais propuseram uma lei de Segurança Nacional de tal teor e com tamanha ousadia e arrogância. Assim como Portugal, Espanha e Inglaterra, diante da fragilidade bélica dos povos indígenas, declaravam qualquer guerra de extermínio como Guerra justa. Hoje, os Estados Unidos entendem como moralmente correto atacar qualquer país, desde que eles próprios avaliem que o imperialismo americano esteja ameaçado. E o pior, essa ameaça de que falam não possui confins, ou seja, no futuro, poderiam entender, por exemplo, que a reserva de água doce da Amazônia signifique ameaça para o bem estar dos norte americanos que têm a maioria de seu território de clima desértico e isso seria, portanto, o pretexto para uma guerra contra o Brasil, o Peru ou a Colômbia.
Diante dessa situação extrema de um imperialismo que auto-advoga a si próprio o direito de julgar e subjugar o mundo, mais do que nunca se faz urgente uma reflexão filosófico-política sobre a problemática que, no fundo é o problema basilar para o futuro da liberdade humanidade.
A lógica que substancia arrogância Americana, a mesma que sustentava o extermínio dos povos indígenas, o nazismo, o fascismo, assim como a discriminação racial, é a lógica do “eu” que penso sobre o eu mesmo, enquanto o outro é sempre relegado á condição de bárbaro, o fora, o marginal. Com efeito, caso desse “outro” estranho, em seu estado de barbárie, signifique qualquer ameaça à identidade do mesmo, deve então, numa escala progressiva, ser discriminado, excluído, extirpado, aniquilado e exterminado. Para uma reflexão que é política e sobretudo filosófica; não nos serve qualquer filosofia, mas uma filosofia que pense o outro político a partir do outro e não a partir de si mesmo como tem sido o caso da filosofia européia ou do centro inapta ao mundo periférico.
Nesse sentido, tomamos o pensamento filosófico-político de Henrique Dussel como chave interpretativa e suporte de reflexão que nos possibilita compreender a do-minação cultural e política dentro e pela filosofia que pensa o mundo do “mesmo” e por conseguinte excluído e excludente. Na abertura de sua obra Filosofia da libertação, Dussel introduz uma investigação sobre o papel de uma verdadeira filosofia a serviço da humanidade. Uma filosofia que não seja ideológica e que se serve somente a si própria com a negação do “outro”. Dussel serve-se da história vista pelos oprimidos e, ao mencionar a realidade histórica de opressão dos fortes sobre os fracos, em específico, o massacre dos povos indígenas das Américas, Dussel cita Bartolomeu de las Casas, que denuncia o genocídio que espanhóis praticavam contra os índios. Para ele, Bartolomé foi o autêntico precursor da filosofia da Libertação na América Latina por ter sido capaz de pensar no lugar do “outro” oprimido, e é reflexão filosófica quando propõe um novo paradigma, uma nova lógica e um novo método de fazer filosofia. Assim, o autor nos convida a repensar a realidade em dois eixos de reflexão: do ponto de vista histórico-antropológico e do ponto de vista filosófico-ideológico.
Do primeiro ângulo, o autor inicia seu retrospecto sobre a história fazendo uma reflexão sobre o espaço. Mostra que o espaço nos estudos da física newtoniana ou o espaço existencial do existencialismo são ingênuos em relação ao espaço político: “Falamos do espaço político, daquele que compreende todos os espaços”. O espaço político “compromete todos os espaços” porque predetermina o conteúdo dos outros espaços com uma forma ideológica. Nesse sentido, o espaço, objeto de estudo da Geografia, é todo ideológico; a América Latina, por exemplo, deveria ser representada, enquanto espaço, da maneira como era concebida pelos índios que aqui viviam. O pensamento europeu deveria oferecer os elementos lógicos apara aperfeiçoar a concepção de espaço, porém sem destruir a forma espacial que, antes de tudo, era a “cosmologia indígena” pré-colombiana. Assim, tanto o substantivo América quanto o adjetivo Latina, perderiam a razão de ser.
Do segundo, entende Dussel que a filosofia tida hoje como universal foi uma forma de pensar o espaço periférico e não o centro do mundo. O nascimento da filosofia se constitui na mais nitente prova disso pelo fato de esta não ter nascido no centro do mundo grego Atenas ou Esparta, mas justamente na periferia. Diz ele:“A filosofia(...) nasceu nos espaços periféricos em seus tempos criativos. Aos poucos foi para o centro em suas épocas clássicas, nas grandes ontologias, até agradar-se nas más consciências da grandes morais, ou melhor moralistas”.(1)
Desta constatação, o autor conclui a importância do espaço ao dizer que “não é a mesma coisa nascer no Pólo Norte em Chiapas ou em Nova York”. O homem carrega dentro de si o seu “cosmos”; ser latino, por exemplo, não somente uma eventualidade ou algo acidental, mas é uma marca ontológica imprimida na antropologia do indivíduo. O pensador cientista político ou filósofo deve ter em mente essa constatação para que possa pensar o indivíduo latino a partir dele próprio e não das categorias de pensamento da ciência européia.
Retomando a questão do nascimento e amadurecimento da filosofia, segundo Dussel, na História, em seu desenvolvimento, o pensamento filosófico se transforma continuamente, da periferia para o centro. E nesse sentido, a cultura dominante pensa sobre si mesma, legando ao “outro” que está de fora o estatuto de o não ser ou o marginal ou o bárbaro. Assim aconteceu com a filosofia grega na época clássica e no helenismo greco-romano.diz Dussel:”o homem da periferia foi, neste caso, o pobre beduíno do deserto arábico, não mais o indo-europeu que, atravessando com seus cavalos a estepe euro-asiática, invadiu um dia a Grécia, Roma, Índia”.
O pensamento moderno inaugura, quando a Europa se torna o centro do mundo conforme comenta Dussel, uma “centralidade conseguida pela espada e pela dor” a partir desta nova condição, segundo ele, “o europeu chega a julgar-se um “eu” constituinte”. E tudo que estivesse fora deste “eu” expresso na cultura européia deveria ser considerado como pernicioso e por conseguinte excluído. A exterminações na América, os milhões de africanos arrancados de seu lar como escravos, o domínio da Ásia e da África, tudo isso faz parte deste modo de pensar.
Este “eu” de que fala Dussel se constitui em um núcleo do pensamento que norteou toda a filosofia e, por decorrência, a prática política da modernidade européia, e podemos inferir que se prolonga até os dias de hoje como por exemplo à últimas ameaças do presidente americano das últimas semanas que o mundo todo vem as-sistindo. E de grande perspicácia e lucidez o que nos diz Dussel no texto que segue. “a partir do ”eu conquisto” ao mundo asteca i inca, a toda a América; a partir do “eu escravizo” aos negros da África, vendidos pelo outro e pela prata conseguida com a morte dos índios no fundo das minas; desde o “eu venço” das guerras realizadas na índia e na China até a vergonhosa “guerra do ópio deste eu aparece o pensamento cartesiano do “ego cogito”.
Vemos, assim, que o Ego Cogito serve de fundamento para a prática colonialista européia durante a história; o logos filosófico do centro justifica uma cosmologia, uma ética e uma política a partir do “centro”, pois fora desse núcleo do logos europeu todo o resto é pura barbárie.
Como vimos, a filosofia se torna ideológica quando impõe ao “outro” a forma de pensar do “mesmo”, noutros termos, a exterioridade é negada em favor d afirmação do pensamento dominante do “centro”. Daí: uma lógica, uma tábua de categorias, um método são impostos ao “outro” que categoricamente é classificado, circuns-tancialmente, como o bárbaro, isto é inculto, inferior, ignóbil, inepto, ou terrorista, perigoso, subversivo e herege.
Os eixos histórico-antropológico e filosófico-ideológico se cruzam quando o pensamento se concretiza em historia e cultura e, desse modo, o cogito ergo sum cartesiano torna-se, conforme Dussel, em “ego conquiro” e como “fundamento prático”. Como fica expresso, surge uma nova “ontologia”, e isto só acontece com o óbito da verdadeira filosofia. A morte se dá porque o logos que deveria pensar sobre si e também fora de si se limitou a si, sendo incapaz de pesar a exterioridade do mundo. A “ontologia” que Dussel se refere só é logos de si própria isolando-se em torno de seu próprio umbigo e nesse olhar gravitacional sobre si mesma teria perdido a aptidão de olhar para milhares de constelações que compõe o mundo da exterioridade, se combalindo na mais absoluta cegueira.
“Esta ontologia não surgiu do nada. Surge de uma experiência anterior de dominação sobre os outros homens, de opressão cultural sobre outros mundos. Antes do ego cogito existe o ego conquiro. (...) o centro se impôs sobre a periferia há cinco séculos. Mas, até quando? Não terá chegado ao fim a prepon-derância geopolítica do centro? Podemos vislumbrar um processo de libertação crescente do homem da periferia?”(1)
Diante dessa morte da filosofia, ao transformar-se em ontologia ideologizada ideológica e ideoligizante, Dussel conclama a necessidade da construção de uma nova e autêntica filosofia, a Filosofia da Libertação: “A filosofia que souber pensar esta realidade, a realidade mundial atual, não a partir da perspectiva do centro, do poder político, econômico ou militar, mas desde a fronteira do mundo atual central, a da periferia, esta filosofia não será ideológica (ou ao menos o será em menor medida). Sua realidade é a terra toda e para ela são realidade também os condenados da terra”. (1)
Esta nova filosofia tem o papel de repensar ao mesmo tempo a situação da própria filosofia e, então, será alforria de si própria, de seu logos para, em seguida, ser instrumento político de libertação do ethos da exterioridade periférica. Aí, então, a filosofia torna-se instrumento de um bem comum universal, a Pólis não será mais a Pátria européia/norte-americana, mas sim a humanidade.
Traduzindo isso para a atual postura colonialista destruidora praticada pelo “centro” em relação à periferia, hoje, os principais atores protagonistas têm nome: os Estados Unidos da América. Desde as guerras de extermínio dos povos indígenas da América do Norte até hoje, são inúmeras as guerras, as ocupações, as ingerências políticas, os financiamentos de ditaduras, os embargos econômicos, e outras formas de opressão, não mais sobre povos periféricos de seus territórios, mas sobre todo o planeta. Só para lembrar alguns exemplos mais gritantes: a guerra no Vietnã, ocupação de quase todos os países da América Central, Golpes Militares por toda América Latina, Guerra do Golfo, Guerra do Afeganistão e outros.
Desse quadro histórico de ingerências pelo mundo todo, não se podia esperar outra atitude por parte dos povos oprimidos a não ser o sentimento de vingança e o crescente ódio aos americanos. Atitudes de grupos terroristas sobre as torres de Nova York expressam exatamente este sentimento extremado. Como diz muito bem o arcebispo de Boston, cardeal Bernard Law, numa recente carta a Gerog W. Busch, da qual mostramos este trecho: “Conte a verdade ao povo, senhor presidente, sobre o terrorismo. (...) o senhor disse que somos alvo de terrorismo porque defendemos a democracia, a liberdade e os direitos humanos no mundo... Que absurdo, senhor presidente! Somos alvos dos terroristas porque, na maior parte do mundo, o nosso governo defendeu a ditadura, a escravidão e a exploração humana.”(3)
A voz profética do cardeal de Boston se levanta como aquele que pensa com o “outro” e essa ética da alteridade o possibilita ver o que milhares de “pensadores” jamais têm conseguido por não possuírem olhos para enxergar, dado ao fato de viverem numa ontologia do “mesmo”.
Denúncias como essa do Cardeal Law, assim como os escritos de Bartolomé de Las Casas há cinco séculos, provam que a força germinadora de uma filosofia libertadora está presente no pensamento humano e, por isso, mais uma vez Dussel anuncia o nascimento dessa filosofia:
“Contra a ontologia clássica do centro(...) levanta-se uma filosofia da libertação da periferia, dos oprimidos, a sombra que a luz do ser não pode iluminar. Do não ser, do nada, do outro, da exterioridade do mistério do sem sentido partirá o nosso pensamento. Trata-se, portanto, de uma filosofia bárbara.”(1)
Enfim, é preciso recordar o que escreve Gabriel Garcia Marques sobre a causa que gera pobreza na América Latina quando diz: “a causa da nossa grande pobreza é a nossa grande riqueza”. Nesse sentido, podemos afirmar o mesmo que os bispos americanos afirmaram em Puebla: “A América não é pobre mas empobrecida”. E devemos ampliar o conceito de empobrecido, partir do ponto de vista econômico para o político e filosófico. Ou seja, ainda pensamos a partir do “centro”; somente esta filosofia bárbara de que fala Dussel será capaz de fazer estes pobres empobrecidos, nessa condição e a partir dela, dizer ao mundo central e, em específico àqueles que pensam, conquistam e vencem como George Busch, que: direitos humanos, liberdade, democracia, preservação ecológica e outros “discursos vazios”, somente sairão do papel, tornando-se um fato, quando libertarmos a filosofia com nossa forma original de pensar como periferia. Esses discursos vêm e esvaem-se do centro para o próprio centro, nunca dizem nada ao outro. Jamais dizem o que milhões vêm querendo que de fato seja o mundo, são discursos do mesmo para o mesmo que se movimentas linearmente do “eu penso” para o “eu venço”, “eu domino”, “eu conquisto”, deixando de fora toda a exterioridade que uma nova ontologia fundada num novo logos requer. Aqui, torna-se muito vivo o que dizia Karl Marx acerca da tarefa da filosofia, “não mais de pensar o mundo mas de transformá-lo”. E isto cabe a quem? Aos novos pensadores, os autênticos filósofos, como declara Dussel:
“A filosofia de um filósofo autêntico, a filosofia de um povo como o latino-americano, é analogicamente semelhante (e por isso é uma etapa da única histó-ria da filosofia) e dis-tinta (e por isso é única e original, inimitável, o outro de um outro, porque pensa a voz única e um novo outro: a voz latino-americana, palavra sempre reveladora e nunca ouvida nem interpretada).(1)
José Davi Passos,
Professor na Univ. Fed. do Pará e
Doutorando em Filosofia – PUC/SP
Bibliografia:
(1)DUSSEL, Henrique. Filosofia da Libertação, São Paulo. Loyola, 1977.
––––––––––––––––––. Método para uma Filosofia da Libertação. São Paulo, Loyola, 1976.
(3) Revista Família Cristã. Ano 68, 801, setembro de 2002, 10.