O problema crítico kantiano: como é possível conhecer?
Os elementos fundamentais do pensamento à época de Kant correspondiam a uma visão de mundo vinculada à burguesia – seus temas mais relevantes giravam em torno do homem, da liberdade e do individualismo. Esse pensamento burguês se expressou de formas específicas em diferentes países em função das condições econômicas, sociais e políticas de cada um deles: deste modo, tem-se o desenvolvimento do empirismo e do sensualismo na Inglaterra, e o racionalismo na França e na Alemanha. As condições econômicas e sociais e a participação da burguesia no poder político já no século XVII, que favoreceram a ocorrência da Revolução Industrial na Inglaterra, favoreceram também o desenvolvimento do empirismo e do sensualismo neste país. Tal pensamento se expressa em filósofos como Hobbes, Locke, Newton e Hume, que tomam como elemento fundamental na elaboração do conhecimento a sensação, o empírico. Na Alemanha, contudo, o estabelecimento do poder burguês ainda era muito problemático: suas condições econômicas e sociais eram bastante atrasadas e estagnadas, com uma pequena burguesia mercantil e industrial aparentemente incapaz de tomar as rédeas do processo de desenvolvimento alemão. Neste sentido, a razão será enfatizada como forma de alcançar o desenvolvimento necessário à burguesia alemã – a razão teria o papel de projetar o ideal daquilo que deve ser, dirigindo para a vontade e para a ação moral as preocupações centrais dos pensadores alemães. Para tanto, estes pensadores supunham que leis “a priori” do pensamento e da ação garantiriam o acordo entre os indivíduos para a realização de um projeto de desenvolvimento burguês, dado que as condições reais empíricas limitavam a consecução de tal projeto. Era pela análise das noções a priori do espírito, ou das idéias inatas, que o racionalismo de Descartes, de Leibniz e de Wolff pretendiam atingir verdades absolutas e constituir uma metafísica.
Ora, Kant irá justamente submeter, à crítica, os racionalistas, por elaborarem explicações e máximas morais a partir de condições a priori do pensamento, sem examinarem os limites desses usos da razão. O filósofo prussiano critica o que chama de “dogmatismo” dos racionalistas alemães, que tem a “/.../ pretensão de progredir apenas com um conhecimento puro a partir de conceitos segundo princípios há tempos usados pela razão, sem se indagar contudo de que modo e com que direito chegou a eles.” (KANT, I. “Crítica da Razão Pura”. In: Kant. São Paulo, Abril Cultural, 1983, col. “Os Pensadores”).
É sob a influência de Hume (1711 – 1776) - empirista inglês que nega a possibilidade da razão pensar a partir de conceitos a priori a conexão de causa e efeito - que Kant propõe a crítica das capacidades da razão. Eis a questão de Hume: um conceito a priori, como, por exemplo, “toda mudança necessita de uma causa”, é realmente necessário? Poderíamos replicar-lhe: “Sim, é necessário. Ora, eu não sei, desde sempre, que uma bola de bilhar que se acha em movimento deve ter recebido algum impulso ?”. O problema, diria Hume, é que não é esta a questão: o que esta em jogo é se a simples noção de “movimento da bola” envolve já a de “impulso” e se, por mero raciocínio (leia-se: pelo conhecimento “a priori”), antes de qualquer experiência, você poderia descobrir esta contida naquela. E Hume arremataria: “- Diga-me a razão por que você pensa como inseparáveis de direito esses conteúdos distintos e desligados”. Sob este diapasão poderíamos incluir qualquer conexão: “solidez”, “peso”, “calor”, etc...
Segundo Hume, portanto, a conexão entre causa e efeito surge a partir do empírico, da repetição da experiência, que cria no sujeito a noção de causa através do hábito. A partir de tal suposição, Hume é levado a desprezar qualquer metafísica, posto que nega a pretensão de verdade para qualquer proposição que não seja resultado da experiência. Ora, a metafísica é um conhecimento que não pode ser fundado pela experiência. O questionamento efetuado por Hume, impõe à filosofia uma severa questão: é possível a metafísica como ciência? Kant tentará responde-la.
Para Kant existem dois tipos de conhecimento: o conhecimento empírico, que se funda na experiência – com efeito, um conhecimento proporcionado pelos sentidos; e o conhecimento a priori, que não se funda na experiência, ou melhor, que não pode ser suficientemente fundado na experiência. A princípio, a noção de a priori é definida de um modo puramente negativo: conhecimento a priori é aquele que não é empírico. Ora, a experiência é incapaz de fundar o conhecimento universal e necessário – ela pode me dizer como as coisas são, mas não porque, necessariamente, elas são assim e não de outra forma. Conseqüentemente, se há um conhecimento que tenha estas qualidades de necessário e universal, então ele não pode ser empírico, mas sim a priori.
Quanto à metafísica, grife-se que se trata aqui da metafísica racionalista, que tem sua maior expressão em Descartes. Em sua obra “Meditações Metafísicas” Descartes se propõem a resolver definitivamente questões tais como a existência de Deus ou a imaterialidade da alma. Leibniz, Spinoza e outros autores racionalistas do período tentaram algo similar. Ocorre que, com efeito, estas questões não podem ser resolvidas pela experiência, pois tais objetos (Deus, a alma, etc...) não podem ser percebidos pelos sentidos. A metafísica apresenta questões que ultrapassam os limites da experiência sensível, trabalha com o conhecimento a priori, portanto. O conhecimento metafísico pretende, pois, ser conhecimento puramente racional, ou seja, trata-se de obter conhecimento por meio da razão pura. Os racionalistas, evidentemente, consideravam a metafísica possível como ciência, isto é, consideravam possível conhecer por meio da razão pura, verdades que transcendem toda experiência possível.
No que diz respeito à física, na primeira metade do século XVIII havia duas teorias concorrentes na Alemanha: a de Descartes e a de Leibniz. Ambas disputavam a hegemonia, não conseguindo nenhuma delas se impor definitivamente sobre a outra. Kant, inicialmente interessado pela polêmica entre cartesianos e leibnizianos, acaba por adotar a física de Newton, sem abandonar a idéia de ciência como conhecimento universal e necessário, na qual havia se instruído. Ora, Kant aceita a física de Newton, mas a interpreta através do conceito racionalista de ciência. A física newtoniana, para Kant, é algo mais que uma mera sistematização de dados empíricos ou uma descrição matemática convincente dos fenômenos: ela é um conhecimento de caráter universal e necessário. Eis o ponto de partida para Kant: se a mecânica newtoniana é ciência e, conforme o espírito racionalista, ciência é conhecimento universal e necessário, então, a mecânica newtoniana é conhecimento universal e necessário. Ora, se considerarmos que conhecimento universal e necessário não pode ser empírico, mas somente a priori, segue-se que, conseqüentemente, se a mecânica newtoniana é possível como ciência então o conhecimento a priori é possível.
Pois bem, tanto a física mecânica de Newton quanto a metafísica dos racionalistas pretendiam obter conhecimento a priori. Entretanto, nesta tarefa, a mecânica de Newton obtém sucesso, enquanto a metafísica acumula fracassos.
Por quê, afinal, é possível o conhecimento a priori na mecânica de Newton a não na Metafísica ?
Eis a questão kantiana.Trataremos dela no próximo número.
André Constantino Yazbek
Mestrando em Filosofia-PUC/SP