Ética e Liberdade em Sartre
A liberdade sempre foi o centro das preocupações humanas. Desde a mais remota Antigüidade, muito se escreveu, muito se falou e se reivindicou em função de garantir a sua primazia. Entretanto, não podemos afirmar o mesmo com relação à ética, cujo interesse sempre se restringiu a um universo, sem dúvida alguma, muito mais limitado. Grosso modo, esse foi o perfil histórico construído até quase o final do século XX. Contudo, qualquer olhar um pouco mais atento poderá perceber que um novo movimento começa a se formar em torno dessa questão. Nunca se falou tanto em ética como nesses conflituosos momentos em que vivemos. A ética torna-se urgente. Num movimento inverso, a sociedade reivindica agora princípios éticos e novas disciplinas que possam sistematizá-los, de forma a garantir a sua liberdade tão ameaçada. E, assim sendo, temos então a bioética que tenta regulamentar os avanços científicos desenvolvidos principalmente na área médica; temos, organizações governamentais propondo a formação de “Conselhos de Ética” que controlem o nepotismo, a corrupção e outros desvios no comportamento político; temos em todas as demais profissões, princípios éticos colocados em questão pela nossa sociedade consumidora, de forma a assegurar os direitos dos cidadãos num estado democrático. Não há dúvida: estamos vivendo seguramente um estado de transição. A constatação da turbulência que acompanha esse esvaziamento do nosso campo de valores, nos induz a buscar novos olhares e novas propostas que nos auxiliem no alargamento de nossos já insuficientes e defasados saberes.
Esse movimento de busca nos traz de volta então, as preocupações éticas de Jean-Paul Sartre que, apesar de tão negligenciadas, hoje nos surgem com uma sonoridade atual e possível. O porquê da procura por esse filósofo, entre tantos outros, se explica pelo fato de que tal pensador colocou exatamente como fio condutor de sua construção filosófica a possível conciliação entre a liberdade e as questões morais que a envolviam. E é disso que passamos a tratar então, neste momento.
Costuma-se afirmar que a filosofia sartriana é uma filosofia da liberdade. De fato Sartre construiu um sistema filosófico defendendo a criatura humana naquilo que mais a dignifica: a sua liberdade de ser. Mas seu conceito de liberdade não traduz exatamente aquilo que o senso comum entende por tal questão. A liberdade para Sartre tem um sentido ontológico, isto é, o homem é intrínseca e ontologicamente livre. A liberdade surge como uma necessidade: “o homem está condenado a ser livre”1 – afirma Sartre. Contudo, não se trata de uma liberdade abstrata, ou de absoluta transcendência; a liberdade desponta na origem de uma consciência que está inserida no mundo e comprometida com ele por uma relação indissolúvel , ou seja, que está “em situação”.
Voltemos, portanto, nosso olhar para essa questão tão polêmica que diz respeito à relação da liberdade com a responsabilidade. A dificuldade que contorna a proposta sartriana reside basicamente no princípio primeiro que rege essa relação. Afirma o filósofo: “...minha liberdade é o único fundamento dos valores (...) Enquanto ser pelo qual os valores existem, sou injustificável”3. Logo, é pela liberdade humana que os valores vêm ao mundo: o homem inventa os seus próprios valores. Não há, a priori, valores inscritos num céu inteligível, não há um imperativo categórico universalmente válido, nem uma lei ética geral que determine as suas escolhas. O que há, é a decisão humana de criá-los. Na sua liberdade de escolha, portanto, reside o único fundamento no qual o homem pode se apegar. Não faz sentido para Sartre, o que os moralistas nomeiam como “valores universalmente válidos e logicamente necessários”. É ele que escolhe seus próprios valores. Com isso, Sartre abre a assustadora possibilidade de uma moral variável.
A ousadia dessa proposta, sem dúvida alguma, causou enorme polêmica nos meados do século passado e, ainda hoje, causa estranheza nos âmbitos mais moralistas de nossa sociedade. A questão colocada em relevo poderia ser assim formulada: de que forma poderíamos, falar em moral diante de tal subjetividade? Como constituir uma sociedade com uma moral variável e subjetiva? Mas, por outro lado, podemos constatar também a decepção desses mesmos moralistas quando, ao diagnosticar a nossa sociedade, nos apontam, desiludidamente que os valores até hoje impostos vêm sendo não só questionados, mas esvaziados de seus significados ao longo do tempo e que temos hoje uma sociedade esquecida de seus mandamentos primeiros, ou seja, uma sociedade que nunca incorporou verdadeiramente os valores morais que lhe foram tradicionalmente transmitidos - exatamente pela falácia dessa transmissão e pela forma tomada por ela no nosso mundo de representações - sem levar em conta o aspecto subjetivo que acompanhava a objetividade de tais determinações.
Em primeiro lugar, vejamos o que significa moral para Sartre. “ Chamaremos de moral ao conjunto de imperativos, valores e critérios axiológicos que constituem os lugares comuns de uma classe, de um ambiente social ou de uma sociedade inteira”4. Tais imperativos porém - apesar de manter com o homem um nexo de ligação externa assegurando seu caráter de alteridade - são, também a forma pela qual o homem se afirma como um sujeito de interioridade, autônomo e que tem por si mesmo o domínio das circunstâncias externas. O caráter de alteridade fica camufladamente substituído pela autonomia, ou seja, construímos uma falsa moral autônoma, mantendo de forma velada o aspecto heterônomo desta mesma moral Dessa forma, os imperativos e os valores - que nada mais são do que imperativos afetivos ligados à imperativos práticos - nos surgem como fórmulas tranqüilizadoras, estreitamente ligadas às possibilidades: “deves, logo podes”, afirma a moral kantiana que, com seu caráter formal e universal, negligencia, por um lado, as características contingentes da realidade humana em situação, e por outro, deixa encoberto nesta fórmula, que tal possibilidade, aí afirmada, retorna e recai incondicionalmente sobre o dever interiorizado. Este aspecto incondicional da possibilidade não leva em consideração o meu ser passado, as minhas vivências anteriores, nem as minhas reais possibilidades; estes ficam falazmente suplantados pelo imperativo do dever, cujo cumprimento fará de mim um sujeito de interioridade.
Sem dúvida alguma, tais aspectos normativos são bastante confortáveis e tranqüilizadores, pois aliviam a responsabilidade pela escolha livremente assumida diante de determinada situação. Isto é, opto por certas atitudes porque as leis, os costumes, os valores impostos pela sociedade assim me “obrigam”, logo não posso ser responsabilizado pelas conseqüências que advieram da minha escolha. Mas o fato não-desvelado é que sou eu que significo tais imposições como valores que deverão nortear as minhas decisões. É a minha consciência sempre significante que dá o sentido de valor às coisas do mundo, que em si mesmo não têm valor algum.
Deste ponto de vista, a atividade moral apresenta, segundo Sartre, dois aspectos: um aspecto relativo que supõe o homem-no-mundo, em situação e um aspecto absoluto que tem origem no próprio homem, e que diz respeito às decisões por ele tomadas em sua relação com o outro em função de sua situação. O absoluto surge, portanto como produto do relativo, e não ao contrário. É pela situação que o homem escolhe o absoluto que vai direcionar a sua escolha. Não há valores prescritos, nem receitas pré-determinadas. A cada momento e em cada situação ele inventa suas soluções e decide, pela sua liberdade, o caminho a seguir, tornando-se, assim, o único responsável pelas decisões escolhidas. E é essa responsabilidade que Sartre coloca em questão em sua conceituação filosófica.
A responsabilidade de que nos fala, portanto, esse filósofo, nos trás um homem responsável por uma escolha feita, não apenas no interior de uma subjetividade rigorosamente individual, mas através de uma subjetividade que passa pelo outro, ou seja através de uma intersubjetividade que leva em conta a liberdade do outro e o compromisso com a situação por ele significada como tal e, na qual, estão imbricadas inúmeras outras consciências também ontologicamente livres, mas também imersas num plano ôntico, constituído por pessoas que estão presentes em sua temporalidade de forma concreta, carregando consigo seu caráter de alteridade, e não somente com uma existência abstrata. Logo, na moral reivindicada por Sartre, pouco importa que seja ela variável ou não, o que importa é que seja uma moral de compromisso e cujas escolhas sejam feitas em função da liberdade humana.
Tudo isso faz da responsabilidade algo cujas proporções se apresentam com um caráter infinitamente maior do que essa noção de responsabilidade que freqüentemente acompanha o senso comum. A noção sartriana de responsabilidade faz do homem um ser inteiramente comprometido com o mundo no qual está inserido, pois, segundo tal noção, esse homem, ao escolher suas condutas, ao apresentar ao mundo suas ações e suas possibilidades, está apresentando a imagem do homem como ele julga que deve ser; uma imagem por ele escolhida e construída sobre valores por ele mesmo fundados e consciente ainda, de que o que é possível para ele, em sua liberdade, é possível também para todos os outros homens. Logo suas escolhas comprometem toda a humanidade e ele se torna com isso, não somente responsável por si, mas também responsável pela humanidade inteira.
A questão da responsabilidade, adquire, diante tal quadro conceitual, uma tamanha abrangência e uma tal relevância que seu surgimento vem acompanhado de um pesado sentimento de angústia. Uma angústia necessária que, nada mais é do que um correlato da liberdade e da responsabilidade que constituem o próprio ser da realidade humana. No momento mesmo, em que o homem deixa cair os artifícios e as máscaras por ele criadas em seu mundo psíquico através de um comportamento de má-fé que lhe venda os olhos e, em seguida, volta-se desvendando com autenticidade a sua implacável condição de legislador, a angústia torna-se inevitável. De qualquer forma, ele pode sempre optar por uma vida autêntica, ou ainda permanecer na alienação proporcionada pela magia de seu mundo psíquico. Mas o que precisa ser considerado é que seja qual for a escolha, é a sua escolha, logo, é também sua a responsabilidade sobre as conseqüências que dela lhe advêm.
Diante da aridez que contorna tais princípios filosóficos não é de admirar que uma sociedade constituída basicamente sobre normas e princípios deterministas - sejam eles míticos, religiosos, psicológicos ou sociais - veja tal proposta como terrivelmente ameaçadora. Entretanto, se levarmos em consideração a rapidez das transformações ocorridas em nossa atualidade, se considerarmos que estamos hoje diante de um quadro social para o qual não temos ainda as ferramentas suficientes que nos permitam interpretá-lo e que nossos antigos códigos não mais esgotam a exigência de formulação de novos conceitos, ou seja, se a dimensão de uma nova ordem planetária nos exige a cada momento uma reformulação do nosso mundo de representações, talvez seja esse, o momento de admitir que existe realmente hoje um novo homem. Não se trata de postular a existência de um Super-Homem. Trata-se do fato de que temos hoje um homem ainda desconhecido, um ser cujos valores se mostram ainda indefinidos e que, por isso mesmo, nos possibilita levantar de novo as cortinas e focalizar mais uma vez a esperança de formarmos com esse novo ser humano uma sociedade mais autêntica, mais verdadeira e mais honesta. Em suma: uma sociedade que atualize, de fato, o cenário, até então utópico, de uma ética da libertação e salvação que sempre esteve presente como um pano de fundo, apenas possível, nos dramas teatrais e filosóficos Jean-Paul Sartre.
Neide Coelho Boechat
Mestranda em Filosofia – PUC/SP
1 - Sartre – O Existencialismo é um Humanismo, p. 9.
3 – Sartre - Op. Cit. p. 73.
4 – Sartre – Determinação e Liberdade, in Moral e Sociedade, p. 34