A Arte à luz de Martin Heidegger
“A arte, enquanto o pôr-em-obra da verdade, é Poesia. Não é apenas a criação da obra que é poética, mas também é poética salvaguarda da obra, só que à sua maneira própria; com efeito, uma obra só é real como obra na medida em que nos livramos do nosso próprio sistema de hábitos e entramos no que é aberto pela obra, para assim trazermos a nossa essência a persistir na verdade do ente.” (Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, p. 60).
Em sua obra a Origem da Obra de Arte, Heidegger esclarece a relação entre artista e obra de arte dizendo que há dependência mútua entre esses elementos. Se o artista é a origem da obra de arte, a obra, por sua vez, é a origem do artista. Mas, não esqueçamos que isto implica num terceiro elemento: a “arte”. Artista e obra devem à arte não somente o seu nome como também a sua origem. Em outras palavras: artista e obra devem sua presença a arte. Por isso, a pergunta sobre a origem da obra de arte conduz, logicamente, a pergunta sobre a essência da arte. Mas, para isso, é necessário recorrer à obra de arte. A partir disto, impõe-se uma nova questão: se a essência da arte nos é desconhecida, como poderemos saber se uma obra de arte é uma obra de arte? Na tentativa de superar esta aporia que, aliás, se encontra no ponto de partida de toda a reflexão estética sobre a arte, Heidegger propõe uma solução: para encontrar a essência da arte que realmente está na obra, buscamos a obra real e perguntamos o que ela é e como é.
A obra de arte distingue-se daquilo que chamamos simplesmente coisa, sem nenhuma especificação determinada. Ela é portadora de um caráter peculiar que merece uma investigação mais acurada. E é o modo como a arte é vivenciada pelo homem que deve fornecer a chave para a essência da arte.
O caráter de coisa é o primeiro traço em que esbarramos, no encontro com a obra de arte que é “criada”, e é pro-duzida. Quando alguma coisa é pro-duzida, é trazida à existência, isso supõe que tenha havido antes uma finalidade. O produto deve ser necessário, útil, e isso deve ter motivado sua produção. Na obra de arte, percebemos, logo de início, que essa finalidade de ser útil, não aparece. A arte é gratuita em seu aparecer. Na obra de arte, não é a utilidade que provoca seu aparecimento, mas é a realização do ser, no produto.
Desde, Ser e Tempo, o método fenomenológico-hermenêutico parte do núcleo diretriz da alétheia. A questão do pensamento gira em torno do impensado que exige ser pensado. Nesta perspectiva, o caráter de coisa, a utilidade, pensadas hermeneuticamente, transcendem a mera materialidade, apontam para o enigmático da obra de arte.
Em Heidegger, a arte é interpretada a partir da subjetividade, mas como instauração do sentido do ser, como linguagem original, poética, na qual o pensar e o poetar se confundem e se fundem numa única manifestação, isto é, a essência da arte consiste na manifestação da verdade.
A investigação do fazer-criativo da obra de arte é como por-em-obra a verdade, ou em outras palavras, a essência da arte é como uma constante origem da eclosão da verdade.
A obra de arte, é assim, um modelo de operacionalização da verdade, um modo de concretizar na criação de um novo ente, a possibilidade de a verdade manifestar-se em ação, em processo, em devir. A noção de arte, para Heidegger, não se submete a uma ação fixa e inerte. Ao contrário, para Heidegger, a arte consiste em pôr-se-em-obra a verdade. O enigma que é a arte mesma, antes de ser resolvido requer ser visto como tal.
“A instituição da verdade na obra é a produção um tal ente que não era e não voltará a passar a ser depois. A produção instala de tal maneira este ente no aberto que o que se intenta produzir clareia originalmente a abertura do aberto em que se ressai. Onde a produção traz expressamente a abertura do ente, a verdade, aí o produzido é uma obra” (op. Cit, p. 50).
Heidegger, explica a arte a partir da verdade, mas não mediante a noção tradicional da verdade que se distingue do belo, do bem, (conceitos platônicos). Para Heidegger, se a verdade é a verdade do Ser, a beleza não pode estar ao lado da verdade. A verdade é o desvelamento do ente enquanto tal e, nesta perspectiva, o manifestar-se, na obra de arte, é o manifestar-se da própria beleza. A beleza é este aparecer da verdade na obra enquanto obra. O belo, pertence, deste modo, a verdade que acontece por si, isto é, acontecimento que tem origem em seu próprio advento. Paradoxalmente, no entanto, desde que há uma coincidência da beleza com a verdade, e desde que o acesso ao real se faz através da ocupação cotidiana, onde a aísthesis (sensação) sempre está presente, o pensamento heideggeriano possui um caráter estetizante.
A pergunta inicial sobre a essência da arte leva à identificação entre arte e Poesia. Identificação essa que se processa através da mediação da verdade. A arte é Poesia como o por-em-operação da verdade. Poesia, no ensaio de Heidegger, é tomada em sentido amplo. Engloba todas as artes; desde a arquitetura até a própria poesia.
Se a Poesia é a essência da arte, a essência da poesia é a instauração da verdade. O filósofo distingue um tríplice sentido no verbo instaurar: doar, fundar e começar. A cada modo de instaurar corresponde um modo de contemplar. Não só a criação é poética. Também a contemplação é poética. A arte é instauração no terceiro sentido, isto é, de provocação da luta da verdade, instauração como começo. A arte permite o brotar da verdade. A arte brota como a contemplação que instaura na obra a verdade do ente. Insere-se aqui a referência à dimensão histórica. A arte é histórica. A pergunta pela origem da obra de arte – pergunta que abrange a criação e a contemplação – conduz à arte. Isto porque a arte, em sua essência, é uma origem e não outra coisa: uma maneira extraordinária de chegar a ser a verdade e fazer-se histórica.
“Fazemos agora a pergunta sobre a verdade em busca da obra. Para que, todavia, nos possamos familiarizar com o que está em questão, é necessário tornar de novo visível o acontecimento da verdade da obra” (op. cit., p. 32).
Mediante tal, se nos apresentam duas questões: o que é a arte? E o que é a verdade em referência à obra de arte? A primeira meta é a busca da realidade da obra, visto que a arte se realiza na obra de arte. Na segunda questão, propõe o filósofo fazer visível novamente o acontecimento da verdade na obra.
A verdade para se instalar, necessita da luta num ente que se produz. Como conseqüência da luta temos uma fenda. A fenda propicia o estabelecimento da verdade. Outro aspecto a ser sublinhado do ser-criado da obra de arte é o testemunho, simples e inequívoco, de que estamos diante de algo que foi feito. A indicação do nome do artista criador é secundária. Talvez seja preferível ignorarmos o nome do artista e as circunstâncias que envolvem o surgimento da obra. A obra de arte oferece-se ao espectador em toda a sua pureza como algo que é. É o desdobrar-se da não-ocultação do ente. Atingimos, destarte, a essência do ser-criado da obra e, com isso, estamos em condições de dar um passo decisivo.
Por mais importante que seja a conquista da essência do ser-criado, a realidade da obra de arte não se exaure no ser-criatura. Faz-se mister deixar que uma obra seja o que é. Isto nada mais é do que a contemplação. A contemplação para Heidegger, é tão importante quanto a criação. Ambas são essenciais ao ser-criatura da obra. Mas não basta qualquer tipo de contemplação. É imprescindível que a contemplação faça justiça à obra. Ou em termos heideggerianos, exige-se uma contemplação que corresponda a verdade que acontece na obra. “A essência da arte é a Poesia. Mas a essência da Poesia é a instauração da verdade” (op. cit., p. 60).
Mediante o exposto, acreditamos e interpretamos a atitude de Heidegger, como uma tentativa de superação da experiência estética, concebida em termos acanhados de um conceito formalista de beleza em favor de uma experiência mais abrangente acerca da arte. Nesta linha, a obra de arte se afirma como apelo à verdade no sentido mais amplo e pleno da verdade. Heidegger, no transcorrer de todo o seu ensaio (A Origem da Obra de Arte), evita cuidadosamente o dualismo sujeito-objeto. Mas, ao final, não pode evitar a referência à contemplação. Referência esta que se encaixa em sua concepção de obra de arte. Cabe a contemplação deixar que a obra seja o que é. O sujeito, na contemplação, deve render-se à obra. Se a primeira palavra cabe a obra é porque na contemplação, o sujeito deve estar atento à obra. Daí não ser incoerência apresentar a contemplação em igualdade de condições com a criação artística: ambas são essenciais.
Heidegger, formula assim uma ontologia da arte. A meditação daquilo que pode ser a arte é inteira e decididamente determinada pela questão do ser. A arte não é tomada nem como domínio de realização cultural, nem como uma das manifestações do espírito, ela pertence àquilo que olhando, não é visto, e aquilo a partir do qual se determina o sentido do ser. O empenho de Heidegger é colocar em primeiro plano a obra de arte, deixá-la ser o que é, libertá-la das ciladas do subjetivismo estreito, a fim de que possa por em operação a verdade, onde reside o significado ontológico da arte. Porém, a verdade da arte não é absolutamente primeira, ela se funda na identidade da verdade do ser, ou seja, a arte é uma das maneiras de exercer a verdade do ser.
Necessariamente, em Heidegger, a beleza é um modo de ser da verdade. Significa que a beleza não pode ser desvinculada da verdade. Se a verdade é a desocultação do ente, enquanto ente, o ato de aparecer ou manifestar-se é, precisamente beleza. Por isso, o belo faz parte do acontecer da verdade: “a partir dele e nele é que ele é devolvido a si próprio, para o cumprimento da vocação a que se destina” (op. cit., p.32).
Vanderley Alves da Silva
Licenciado em filosofia e Bacharelando em Direito –UNISANTOS
Músico erudito, professor de violão.
BIBLIOGRAFIA:
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997.
Beaini, Thaís Curi. Máscaras do tempo. Petrópolis: Vozes, 1995.
Gmeiner, Conceição Neves. A morada do ser. São Paulo: Loyola, 1998.
HEIDEGGER, Martm. A origem da obra de arte. Lisboa. Edições 70, 1992.
__________________ A questão da técnica. In: Cadernos de tradução, São Paulo: DF/USP, N.2, 1997.____ Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1989.