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Platão: um outro olhar

Pã, e todos vós, divindades locais: daí-me alcançar a beleza interna, e que tudo o que eu tenho no exterior fique em consonância com o que trago dentro de mim; rico me pareça exclusivamente o sábio, e seja todo o meu ouro o que apenas o homem temperante necessite e possa carregar”.

Sócrates (Fedro,267,c)

Observamos que para Platão (428-348 a.C.), o filósofo não escreve tudo o que sabe. Os estudos nos mostram que Platão fez vários comentários sobre determinados assuntos dos quais ele não escreveu. Estamos ai diante das doutrinas não escritas de Platão, encontramos referências a elas, através de seus discípulos: Aristóteles, Espêusipo e Xenócrates. Temos como parte da doutrina não escrita de Platão, os princípios do uno e da díade.

Uma interpretação profunda de Platão, passa pelo conhecimento dos seus escritos, assim como pelas doutrinas não escritas, transmitidas aos seus discípulos, através da oralidade dialética, ou seja, através do diálogo de Platão com os seus discípulos diretos.

Notamos na atualidade, a existência de dois paradigmas hermenêuticos. Um deles acredita na autarquia total dos escritos, reduzindo desta forma as doutrinas não escritas; o outro por sua vez acredita na relação entre os escritos e as doutrinas não escritas, atribuindo grande importância às doutrinas não escritas, para uma melhor compreensão da obra de Platão.

Constatamos, que a postura dos discípulos diretos de Platão: Aristóteles, Xenócrates e o sobrinho e sucessor de Platão na Academia, Espêusipo, eram a de grande valorização das doutrinas não escritas, dos seus diálogos com o mestre Platão, as quais vêem a iluminar os escritos de Platão. Postura semelhante a esta, assume em nossos dias, a Escola de Tübingen-Milão.

Observamos que o segundo paradigma interpretativo se deu com o renascimento do platonismo, e se desenvolveu de forma paralela ao platonismo, tendo o seu inicio no século II d.C., como referência desta fase temos o Didascálico de Albino, onde é marcante o interesse teorético, a estrutura hierárquica da realidade supra-sensível e do divino em seus três níveis: o Primeito Intelecto, o Segundo Intelecto e a Alma do mundo. O Primeiro Intelecto é identificado como a realidade primeira e suprema, deixando de lado o Uno e a Díade de Platão das doutrinas não escritas. Afirmam que a finalidade do ser humano é a assimilação de Deus. Tenta-se ler na obra de Platão, teorias que ali não estão expressas.

Mais à frente com Plotino, o paradigma se torna mais sistemático, desenvolvendo-se juntamente com o neoplatonismo, sendo significativo para o seu desenvolvimento à figura de Jâmblico e Proclo. Temos com Plotino, a doutrina das três hipóteses: Uno, Nous, Alma. Os neoplatônicos acreditavam que através de suas interpretações, a respetio dos escritos de Platão, alcançavam toda a doutrina platônica. Entretanto os neoplatônicos fazem uso das doutrinas não escritas, o que possibilitou o desenvolvimento do neoplatonismo, basta ver a doutrina do Uno tida como Princípio supremo, estando para o Bem. A finalidade da existência humana se aproxima do divino, é um recolhimento no Uno.

O escrito intitulado “Timeu” é grandemente valorizado, inclusive por Proclo. Por outro lado o texto intitulado “Parmênides” também é exaltado pelos neoplatonicos, uma vez que viam nele a estrutura da metafísica. Ao passo que Jâmblico, afirmava que um diálogo de Platão deveria ser interpretado tendo em vista um fim determinado.

Contudo, na idade média esse paradigma se manteve, embora sofrendo uma série de reduções, sendo limitado o conhecimento dos textos diretos de Platão. Isto se deu, sobretudo devido aos padres católicos que utilizavam fontes platônicas e as simplificavam aproximando-as das doutrinas cristãs. Assim como o neoplatônismo também já realizava reduções (médio-platônico). Outro fator significativo se deu no ocidente, com a tradução do “Timeu” por Calcídio, assim como seus comentários que remetem a postura médio-platônicas; outro fator foi o comentário ao texto de Cícero: “Sonho de Cipião”, realizado por Macróbio, que utiliza um platonismo simplificado. Santo Agostinho, também leu Platão através do paradigma neoplatônico e o aproximou das idéias cristãs. Assim na idade média faltou a leitura direta aos textos de Platão, ou seja, faltou um real aprofundamento aos diálogos platônicos originais. Uma vez que o paradigma neoplatônico, até mesmo através de Proclo, pode ter sido influenciado pela doutrina cristã, através de Dionísio o Areopagita.

Destarte, na modernidade, se dá um renascimento dos escritos platônicos, entretanto, apesar do rico contato com os originais, o paradigma neoplatônico continua muito vivo e não é superado, sendo desenvolvido por Bizâncio, que após o fim das Escolas de Atenas e de Alexandria, conservou a tradição helênica e influenciou de maneira significativa o modernismo Italiano. Outro fato significativo foi que a tradição humanista latina se desenvolveu mais rapidamente, neste período, do que as tradições gregas, tendo destaque à filologia textual, e a perspectiva cronológica, o que favoreceu uma melhor compreensão da Antiguidade. Somam-se ainda, o fato de Ficino, em 1484 ter traduzido Platão e em 1492 “Enéadas” de Plotino, assim como as obras dos neoplatônicos, o que vai reforçar o paradigma hermenêutico neoplatônico, o qual só será refutado no século XVIII.

O paradigma neoplatônico é substituído por um novo paradigma, desenvolvido por D. Schleiermacher, o qual realizou uma séria tradução da obra de Platão, bem como considerou os escritos platônicos, como uma síntese de forma e conteúdo, o que é próprio da filosofia, onde os diálogos platônicos possuem uma unidade doutrinal e expressam um sistema preciso, possuindo um valor autárquico, sendo desta forma, valorizado os escritos e desprezada a tradição indireta.

Constatamos através do paradigma de Schleiermacher, que Platão usou o diálogo para escrever, para filosofar. O diálogo platônico é um gênero literário por ele criado. A forma de diálogo na concepção de Platão é uma indissociável síntese de forma e conteúdo, é a expressão por excelência da filosofia. Sendo que este diálogo pode ser com o outro, bem como, um diálogo da alma consigo mesma. Assim sendo, para Platão a forma de comunicação filosófica por excelência é o diálogo filosófico. Seus diálogos remetem a uma unidade doutrinal, a um sistema, neles é desenvolvida uma estrutura didática de textos menos complexos, para textos mais complexos. Outro fato curioso é que seus diálogos são autárquicos, ou seja, são autônomos.

Em síntese, encontramos no paradigma de Schleiermacher, o qual se refere a uma interpretação de Platão, a existência de uma síntese de forma e de conteúdo, assim como uma unidade doutrinal, orgânica, ou seja, os diálogos são etapas articuladas que se sucedem organicamente de um nível mais elementar, passando para um nível construtivo direto, até atingir um nível sistemático explícito. Cada diálogo deve ser visto no contexto e no conjunto da obra platônica. Existe uma autonomia, uma autarquia da obra escrita, onde temos a autenticidade da obra de Platão, sua cronologia, sua forma e estrutura dos diálogos como peça do conjunto da obra.

Zeller propõe uma articulação do paradigma que as doutrinas não escritas de Platão, referem-se, sobretudo aos seus últimos escritos, por exemplo “As Leis”, não influenciando desta forma o grande conteúdo de sua obra. Desvaloriza desta forma as doutrinas não escritas, por serem fruto da velhice de Platão, bem como, por conterem, também, a seu ver contradições e adaptações.

L. Robin, em 1908, procurou desenvolver uma articulação complexa do paradigma, procurando compreender a essência do pensamento platônico, interpretou de maneira sistemática o “Timeu”, com base nas doutrinas não escritas, alcançando ótimos resultados.

Julius Stenzel, em torno de 1920, realiza uma articulação do paradigma tradicional, que tende ao Platão tardio, introduzindo desta forma, uma nova maneira de ler os diálogos platônicos, a luz das doutrinas não escritas.

Em 1919 Wilamowitz Moellendorff, realiza uma grandiosa articulação do paradigma tradicional, tendo em vista a “Carta VII” de Platão, valorizando desta forma as doutrinas não escritas.

A “Carta VII” de Platão apresenta as doutrinas não escritas, assim como os motivos de sua constituição desta forma, e será esplendidamente investigada pela Escola de Tübingen, a qual obteve ótimos resultados.

Observamos, que diante do paradigma shleiermacheriano dominante, mesmo antes das contribuições da Escola de Tübingen, existiam esboços de um paradigma alternativo, que permaneceram isolados.

K. F. Hermann em 1839, já valorizava as doutrinas não escritas de Platão. Em 1931, H. Gomperz apresentou um trabalho valioso, no qual reconhece que o conteúdo da “Carta VII” refere-se ‘ Sobre o Bem’. Findlay, em 1920, também dava crédito às doutrinas não escritas, entretanto seu trabalho só vem a público em 1974.

Um novo paradigma é difícil de firmar-se, pois traz em si algo de revolucionário, gerando muita resistência entre os estudiosos, e um consenso no campo científico é resultado muitas vezes, de um longo e árduo trabalho, sendo mister a maturidade.

O novo e revolucionário paradigma proposto pela Escola de Tübingen, afirma que os escrito platônicos, na sua parte, ou, no todo, não são autárquicos, assim como dos escritos não temos uma unidade, uma vez que temos que agregar a eles a oralidade dialética, bem como, as doutrinas não escritas, são basilares, ou seja, nos dão condição de uma ampla compreensão dos escritos platônicos.

Destarte, temos a importante visão da Escola Platônica de Tübingen-Milão, que afirma que os escritos de Platão não são autárquicos. Bem como, que dos escritos não se apreende uma unidade, porque a unidade é subjacente ao escrito. Entre o escrito e o oral existe uma complementaridade. A tradição indireta oferece a chave de leitura da obra de Platão, para uma leitura sistemática.

A leitura de Platão, a partir do novo paradigma, se dá observando as características do diálogo platônico, ou seja, a característica de que todas as obras de Platão colocam em cena discussões, onde o caráter dialógico é evidente. Entretanto para Platão, o diálogo não é o único meio de filosofar. Existem monólogos, existe o diálogo da alma consigo mesma. O diálogo vem além da alma, o saber vem além dela. É possível filosofar para além da discussão, do diálogo. Para Platão, existe uma dialogicidade no pensamento, não existe a estrita necessidade de um interlocutor. As discussões se desenvolvem em um lugar e em um momento determinado, ou seja, são circunstanciadas. Para Platão não se filosofa de qualquer maneira. Existe uma individuação dos personagens. Todos os diálogos têm um condutor do diálogo, o condutor está acima dos interlocutores. O condutor se detém com um interlocutor por vez, onde a discussão se dá entre o condutor e o interlocutor. O interlocutor da discussão pode responder a todas as objeções. O condutor vence a discussão sempre, ele é invencível, ele sempre faz a discussão avançar. A discussão progride por saltos, que vão deixando o interlocutor em um patamar acima, quando este caminha junto com o condutor no diálogo, nos apontando assim, para a tradição oral de Platão. O condutor ‘socorre’ o seu próprio discurso, utilizando ‘passagens de retenção’. O filósofo está à frente do seu discurso. A filosofia não expõe de qualquer maneira, ela é objeto de uma busca em comum, de uma longa convivência, ou seja, a filosofia é fruto da busca em comum, porém, a filosofia não se oferece de qualquer maneira, este fato também nos aponta para a tradição oral de Platão.

Platão escreve para os ‘leigos’, assim como, para os ‘cientistas’, daquela época, uma vez que certos diálogos seriam acessíveis apenas às pessoas cultas. Escreve também, para os ‘discípulos’, para os membros da academia, que eram pessoas que possuíam conhecimentos, eram os cultivados.

Observamos que o significado de ‘sungramma’ (escrito), aparece muitas vezes na obra de Platão. Na carta sétima, Platão afirma que nunca haverá um escrito seu a respeito de determinadas coisas. Temos de ‘sungramma’, muitas interpretações. ‘Sungramma’ como um escrito doutrinário, como um tratado, como um escrito instrutivo, como uma obra sistemática, entretanto esta seria uma interpretação equivocada, uma vez que ‘sungramma’ refere-se a um escrito de determinado gênero, para se contrapor ao ‘poiema’, ou seja, ao poema e a outro tipo de escrito que era o ‘hypónnêma’, que é um escrito técnico, específico da palavra.

A palavra ‘Sungramma’, para Szlezák, indica um sentido mais geral de um escrito em prosa, que se contrapõe ao poema e a hypónnêma.

Para os pensadores da Escola de Tübingen, a palavra ‘sungramma’, refere-se a prosa literária e é distinta da poesia.

Platão, afirma na “Carta VII”, que o filósofo, não escreve sobre o que considera de maior valor. Para maior clareza, faremos menção a um escrito de Platão, onde este afirma que: “De mim, pelo menos, nunca houve nem haverá nenhum escrito sobre semelhante matéria. Não é possível encontrar a expressão adequada para problemas dessa natureza, como acontece com outros conhecimentos”.

Pois entrementes, Platão acredita na superioridade do discurso oral sobre o escrito, uma vez que, o escrito se dirige até àqueles aos quais seu conteúdo não lhe convém, assim como, o escrito faz sempre a mesma afirmação, não constituindo um verdadeiro ensinamento, bem como, um escrito não pode defender-se sozinho, ele necessita da ajuda do seu autor. Já através do discurso oral, o dialético, sonda o interlocutor, se cala quando acredita ser conveniente, quando acredita ser viável, argumenta, realizando uma autentica comunicação, quando necessário leva auxilio ao seu discurso, transmitindo também estes ao discípulo.

Outrossim, quando um escrito é de um filósofo, ele remete a uma realidade superior, que uma realidade escrita. Possui algo mais de filosófico, a ‘timiôtera’, que são as coisas de maior valor, os conteúdos filosóficos.

Para finalizar, diríamos ainda, que o filósofo recorre ao seu próprio discurso, retomando o caminho, restabelece a relação com quem o questionou, assim como ilumina o seu escrito, com conteúdos de maior valor, recorre, portanto a ‘timiôtera’, demonstrando que tem algo a mais a dizer, do que ele colocou em seus escritos. A ‘timiôtera’, portanto, as coisas de maior valor, as mais preciosas, são próprias do filósofo, trazem socorro ao seu discurso.

Existe a questão da conveniência ou não de apresentar um escrito, uma vez, que através da oralidade, do diálogo, conhecemos a alma do interlocutor, ao passo que no escrito não é possível conhecer a alma do leitor, correndo então o risco, de uma refutação, de uma má interpretação do escrito.

LUÍS OTÁVIO MACIEL

(Mestrando em Filosofia, PUC-SP)

 

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11. PERINE, Marcelo. O significado de süngramma na interpretação da escola platônica de Tübingen.  Artigo PUC-SP, CNPq, 2003.

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