A questão do “observável/inobservável” nas visões de Bas van Fraassen e Ian Hacking
Na atual discussão entre Realismo e Anti-Realismo, um dos grandes conflitos existentes refere-se à existência ou não de entidades inobserváveis. Dentre os autores que representam esses dois pontos de vista destacamos Bas C. van Fraassen, como defensor do Empirismo Construtivo, e Ian Hacking, defensor do realismo de entidades. Ambos apresentam seus pontos de vista com relação à questão da distinção entre entidades observáveis e entidades inobserváveis, cada um deles utilizando-se de distintos critérios de demarcação para esta questão.
Van Fraassen, em 1980, apresenta em sua obra The scientific image, uma nova proposta que se apresenta como uma melhor alternativa de explicação na filosofia da ciência: o empirismo construtivo em oposição ao realismo científico. O empirismo construtivo surgia como uma nova forma de posicionar-se perante as teorias da ciência. Ao invés de caracterizar as teorias científicas como verdadeiras ou mais próximas da verdade, como queria o realismo científico, van Fraassen propõe a adequação empírica como característica que dava credibilidade às teorias que melhor explicavam o mundo.
O realismo é uma posição que vê a ciência como um processo de descoberta do mundo. As teorias se aproximam da verdade cada vez mais. O objetivo da ciência é fornecer relatos verdadeiros do mundo, descrevê-lo como ele é em seus mínimos detalhes; descrever seus processos, suas entidades, mesmo que estas sejam inacessíveis aos sentidos do homem. E o constante progresso da ciência é demonstrado nos avanços científicos, nos sucessos explicativos das teorias. As teorias, portanto, são aceitas na medida em que se apresentam como relatos fiéis do mundo, sendo, dessa forma, caracterizadas como verdadeiras. A verdade, nesse sentido, refere-se à idéia de que existe correspondência entre o discurso sobre o mundo com o mundo real. Uma teoria é tida como verdadeira, por assim dizer, quando seus termos, sua estrutura e seu conteúdo não são meras convenções humanas, nem simplesmente ficções, mas elementos diretamente ligados à estrutura real do mundo. Devemos ressaltar que não há uma noção de verdade exata no realismo sofisticado. Boyd, um dos mais famosos realistas, afirma que não temos uma verdade última, mas temos teorias mais próximas da verdade a cada passo que se dá na ciência, na medida em que a nova teoria explica mais coisas que a anterior.
O próprio van Fraassen (1980, p.8) dá sua definição para o realismo científico: “A ciência busca fornecer em suas teorias uma descrição literalmente verdadeira de como é o mundo; e a aceitação de uma teoria científica envolve a crença de que ela é verdadeira”. Van Fraassen segue seu argumento dizendo que tal caracterização refere-se ao que ele chama de realismo sofisticado, em oposição ao realismo ingênuo. A diferença, segundo van Fraassen, está no fato de que o realismo ingênuo defende a idéia de que a descrição do mundo é, de fato, verdadeira; para o realismo sofisticado, como o de Boyd, a verdade, na ciência, é apenas um objetivo. Para van Fraassen, o objetivo da ciência não é alcançar a verdade sobre o mundo. O que a ciência faz é elaborar teorias que são empiricamente adequadas ao mundo. Este é o ponto central da divergência de van Fraassen com o realismo científico. Enquanto que para o realismo o objetivo da ciência é fornecer explicações verdadeiras acerca do mundo, para van Fraassen (1980, p.12), “a ciência busca fornecer-nos teorias empiricamente adequadas, e a aceitação de uma teoria envolve, como crença, apenas que ela seja empiricamente adequada”. A justificação para o uso do termo “empirismo construtivo” aparece no sentido atribuído a ele por van Fraassen. Para o mesmo, ser empirista consiste em não crer em nada que esteja além dos fenômenos reais, observáveis. Quanto ao adjetivo “construtivo”, van Fraassen (1980, p.5) diz que “a atividade científica é um processo de construção e não tanto de descoberta: construção de modelos que devem ser adequados aos fenômenos, e não descoberta de verdades a respeito de coisas inobserváveis”. A partir daqui podemos inserir a distinção que van Fraassen faz entre aquilo que é observável e aquilo que é inobservável. Já sabemos que a aceitação de uma teoria acontece na medida em que ela explica adequadamente fenômenos observáveis. Também sabemos que, para um anti-realista, o conhecimento está voltado àquilo que é observável. Da mesma forma, vemos que, para o empirismo construtivo, podemos dar boas explicações somente àquilo que podemos observar. Resta-nos esclarecer os critérios que vão possibilitar a distinção entre o observável e o inobservável a partir da idéia de van Fraassen.
Quando, nas leituras de van Fraassen, nos deparamos com o problema da observabilidade, vemos apresentada a idéia de que a adequação empírica se refere à idéia de que os modelos que temos na ciência se referem àquilo que podemos observar. Mas isso parece um exercício de reciprocidade na medida em que definimos o que é observável pelos modelos (medidas, por exemplo) da ciência. As teorias referem-se ao que é observável e o que é observável está contemplado nas teorias. Cabe à ciência estabelecer os modelos que vão caracterizar os elementos observáveis. A adequação empírica está exclusivamente relacionada ao que é observável. Neste sentido, dizer o que é e o que não é observável é tarefa da ciência, através de seus modelos. “Para delinear o que é observável, contudo, devemos olhar para a ciência – e possivelmente para aquela mesma teoria – já que isso também é uma questão empírica” (Van Fraassen, 1980, p.57).
Segundo van Fraassen, de acordo com o Empirismo Construtivo, a única crença envolvida na aceitação de uma teoria científica é a crença de que ela é empiricamente adequada: tudo o que é real e observável encontra um lugar em algum modelo da teoria. Definimos padrões de observabilidade, “tamanhos” até onde podemos dizer que algo é ou não é observável. Estabelecemos medidas. Mas o próprio van Fraassen diz que é difícil determinar esses limites de forma definitiva. A ciência pode estabelecer distinções entre o observável e o inobservável. “O conteúdo empírico de uma teoria agora é definido em ciência por meio de uma distinção traçada pela própria ciência sobre o que observável e o que não é observável” (Van Fraassen, 1980, p.81).
Porém, a principal forma de demarcação para a observabilidade, segundo van Fraassen, é outra. Para ele, é a distinção antropocêntrica que vai estar na base de toda e qualquer distinção entre entidades observáveis e entidades inobserváveis. São os limites especiais da observação humana que servem como critério-base para tal distinção. “O organismo humano é, do ponto de vista da física, certo tipo de aparato de medição. Como tal, ele tem certas limitações inerentes – que serão descritas em detalhes em estágios avançados da física e da biologia.” (Van Fraassen, 1980, p.17). Podemos dizer, então, que é observável aquilo que, tendo presente a comunidade epistêmica ideal (indivíduos com sentidos normais para os padrões da ciência atual), é visível a olho nu.
Observação, no pensamento de van Fraassen, é poder visualizar algo sem a utilização de instrumentos; é poder ver objetos com a visão desamparada. Como no exemplo de van Fraassen (1980, p. 16-17) sobre a observação das luas de Júpiter: “Olhar através de um telescópio as luas de Júpiter parece-me um caso claro de observação, já que é certo que os astronautas seriam capazes de vê-las de perto”. Não é o caso, por outro lado, de uma suposta observação de micro-partículas em uma câmara de vapor. Não temos como verificar “naturalmente” se nossa “observação” das micro-partículas, por meio de câmaras de vapor, é verdadeira.
Aquilo que observamos por intermédio de uma câmara de vapor, para van Fraassen, não passa de objeto fictício, assim como são fictícios aqueles objetos que dizemos observar pelo uso de microscópios. Não há fidelidade real entre a imagem que teríamos de uma célula, por exemplo, e a célula real (se é que ela existe). Na interpretação de certos autores, em especial Hacking (do qual destacaremos as idéias sobre a observabilidade em seguida), para van Fraassen, observações feitas com o uso de microscópios não seriam casos reais de observação.
Outro ponto de vista desenvolvido por van Fraassen atribui a característica “observável” àquilo que se encontra dentro do cone do passado absoluto. Tal posicionamento aparece no texto “Empiricism in the philosophy of science” (1985). Essa idéia de van Fraassen amplia a distinção entre o observável e inobservável a escalas cósmicas. Quanto aos limites da experiência e à nova delimitação do que é observável, van Fraassen (1985, p.253) diz o seguinte: “A experiência não nos revela nada além do que efetivamente nos aconteceu até o momento. Sendo assim, uma estrutura observável é aquela que, segundo a atual descrição científica do mundo, encontra-se dentro do cone do passado absoluto de algum ponto no espaço-tempo”. Van Fraassen estabelece essa nova distinção a partir da Teoria Especial da Relatividade desenvolvida por Einstein e Poincaré, considerada a “explicação atual” do funcionamento do universo. Por isso, podemos dizer, segundo van Fraassen, que o estado atual do conhecimento humano também estabelece limites para a observabilidade.
Dos críticos de van Fraassen sobre os critérios de distinção entre o observável e o inobservável, destacamos Ian Hacking e seu texto “Do we see though a microscope?”. Hacking não vai estabelecer crítica à toda a filosofia de van Fraassen, mas vai tomar especificamente o ponto em que, segundo ele, van Fraassen se equivoca: não aceitar a existência de entidades observadas com o auxílio de microscópios. Para Hacking, a grande falha de van Fraassen está na idéia de que observação é apenas exercício passivo de contemplação. Observação, na concepção de Hacking, não é mera captação passiva do objeto, mas é também interação com o mesmo. Observamos, neste sentido, quando interagimos com o objeto que está sendo observado ou interferimos em seu estado.
Hacking é defensor do realismo de entidades. Nesse sentido ele se diferencia de outros realistas que defendem o realismo de teorias onde se enfatiza a idéia de verdade com relação às teorias que postulam entidades. A partir disso, Hacking propõe o “argumento experimental”. Segundo essa idéia, as entidades que não podem ser observadas, mas que podem ser manipuladas, têm sua existência confirmada. Podemos manipular a produção de fenômenos microscópicos, podemos pesar a massa de seres minúsculos e medir seus volumes. A fabricação de novos aparelhos, o avanço da ciência no campo dos experimentos microscópicos nos leva a crer na realidade desses objetos inobserváveis a olho nu.
Se podemos interagir com o elemento que está sendo observado no microscópio, então concluímos que aquilo que vemos é, de fato, real; não é nenhuma ilusão de ótica ou objeto fictício. Podemos manipular tal objeto, podemos distingui-lo de outros. Podemos atribuir àquele objeto “densidade ontológica”. E isso nos permite distinguir os objetos uns dos outros. Podemos até não explicar como são, na realidade, esses minúsculos objetos, mas podemos dizer que eles estão ali e se diferem uns dos outros pela sua particular “densidade ontológica”.
Hacking diz que um pesquisador só pode distinguir uma glândula salivar de uma mosca da fruta de uma partícula de poeira se dissecarmos essa mosca sob um microscópio. Evidentemente, a olho nu, não seria possível tal distinção, mas sabemos que tais elementos se diferem por realizarmos o exercício de observá-los com o uso de um microscópio. Podemos também, segundo Hacking, dizer que uma célula, invisível a nossos olhos, existe ao interagirmos com ela olhando-a com o microscópio. Podemos separá-la das outras, preparar uma agulha com a qual podemos injetar um líquido nessa mesma célula e observar o resultado de nossa ação. Podemos, por exemplo, vê-la estourar ao introduzirmos um volume excessivo de líquido. Como dizer que aquilo que observamos não é real se podemos, intencionalmente, manipular experimentalmente o objeto? Interagir com o objeto é critério para distingui-lo como observável. Ao introduzirmos uma agulha microscópica na célula, estamos manipulando um instrumento menor que a célula e que foi construído pelo homem. Sabemos que a agulha existe e ela foi feita para aquela função determinada. No microscópio observamos não só a célula, mas também a agulha manipulada por nossas mãos. Concluímos que ambas existem realmente. O que vemos com o microscópio é real.
Hacking considera os microscópios como exemplos de instrumentos que estendem os sentidos do homem. Sabemos que as coisas estão lá, mas elas são, a princípio, inacessíveis a nós. Precisamos, então, utilizar instrumentos adequados para alcançarmos o conhecimento desses objetos. Como humanos, temos certos limites. Para escalar a face de uma rocha, por exemplo, precisamos de instrumentos especiais para escaladas. A necessidade de instrumentos varia de acordo com o grau de dificuldade. Conhecemos nossos limites; e o desenvolvimento de instrumentos adequados para ultrapassá-los nos auxilia na descoberta de “novos mundos”.
Mencionando o exemplo que van Fraassen dá sobre a idéia de que seriam observáveis os objetos vistos pelo telescópio e não os vistos pelo microscópio, Hacking estabelece mais uma crítica a esse pensador. Para van Fraassen, as luas de Júpiter são observáveis, mesmo que, até hoje, somente as tenhamos visto pela utilização de telescópios, porque os astronautas poderiam ir até lá e visualizá-las sem a ajuda de qualquer instrumento. No caso de uma plaqueta do sangue, por exemplo, a observação é impossível, pois não podemos, em hipótese alguma visualizá-las a olho nu. Hacking vai dizer, sobre isso, que seria possível visualizar plaquetas do sangue se nos reduzíssemos ao tamanho de um paramécio, assim como seria possível ver as luas de Júpiter se pudéssemos nos aproximar suficientemente delas a ponto de observá-las sem telescópios.
Na atitude de defender a possibilidade de observação pelo uso de um microscópio, Hacking diz que as imagens obtidas pelos mesmos, e que são tão questionadas por van Fraassen, podem ser confirmadas pelo uso de diferentes tipos de microscópios. Cada um deles poderia utilizar diferentes aspectos das ondas luminosas. Não há porque questionar as imagens obtidas por esses microscópios se elas se apresentam sempre da mesma forma em todos eles. Para Hacking, seria muita coincidência se dois processos físicos completamente diferentes (como a utilização de microscópios que se valem, um de transmissão eletrônica e outro de re-emissão fluorescente) produzissem imagens idênticas, que seriam aberrações visuais ao invés de estruturas reais da célula.
A resposta que van Fraassen (1985) dá a essa argumentação diz que a coincidência pode existir, mas isso se deve ao fato de que a amostra utilizada nos diferentes microscópios é a mesma. A imagem que se vai observar, nos diferentes microscópios, será a mesma e isso não é coincidência. Porém a imagem que vemos de maneira igual em todos os microscópios não traz consigo a comprovação de que aquilo que estamos vendo é, de fato, a imagem fiel da realidade. A realidade da estrutura observada não pode ser observada pelo microscópio.
Vemos que, tanto van Fraassen como Hacking utiliza a ciência como critério determinante no processo de delimitação do “observável/inobservável”. Em van Fraassen, vemos a ciência como a responsável por criar modelos a partir dos quais podemos determinar o que é observável e o que não é. Porém essa idéia tem como pressuposto os limites especiais da observação humana. E mais: na medida em que a ciência permite ao homem ampliar seus horizontes e descobrir novos espaços onde se poderiam realizar novas observações, também está contribuindo na delimitação da observabilidade. O avanço do conhecimento científico, portanto, também participa no avanço do horizonte da possibilidade de observação.
Em Hacking também encontramos a idéia da importância da ciência no avanço do horizonte de observabilidade. Na medida em que o homem avança na construção de instrumentos cada vez mais sofisticados e que quebram os limites da observação humana, também estamos aumentando o número de entidades que podemos observar. Observamos na medida em que interagimos com o objeto observado, e ampliamos nossa observação ao mesmo tempo em que construímos instrumentos que estendem nossos sentidos. E é também nesse sentido que Hacking diz que não observamos através do microscópio, mas com o microscópio, pois ele é tido como a extensão de nossos olhos. Coisas que antigamente eram inobserváveis (células, por exemplo), hoje são realidades com as quais podemos interagir, que tornaram-se observáveis a partir da utilização de instrumentos adequados. O mundo microscópico sempre esteve aí, mas nossos limites de percepção não nos possibilitavam conhecê-lo; nem mesmo nos permitiam saber de sua existência.
Leandro Carlos Ody
Universidade de Passo Fundo/UPF.
BIBLIOGRaFIA
DUTRA, L. H. A. Realismo, Empirismo e naturalismo: o naturalismo nas filosofias de Boyd e van Fraassen. 1993. Tese (Doutorado), Universidade Estadual de Campinas.
HACKING, I. “Do we see through a microscope?” in P.M. CHURCHLAND & C.A. HOOKER (eds). Images of science: essays on Realism and Empiricism, with a replay by Bas C. van Fraassen. University of Chicago Press, pp. 132-152, 1985.
VAN FRAASSEN, B.C. The scientific image. Oxford University Press, 1980a.
__________“Empiricism in the Philosophy of Science” in P.M. CHURCHLAND & C.A. HOOKER (eds). Images of science: essays on Realism and Empiricism, with a replay by Bas C. van Fraassen. University of Chicago Press, pp. 245-308, 1985.