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Herdamos uma filosofia da praxis

Entrevista com Antônio Joaquim Severino

 As idéias de Mounier “ajudariam a traçar perspectivas para crises políticas de qualquer sociedade onde o ser humano é manipulado, explorado, oprimido, como é bem o caso da sociedade brasileira”, destaca o Prof. Dr. Antônio Joaquim Severino, na entrevista concedida

por e-mail à IHU On-Line sobre Emmanuel Mounier. Severino é professor titular de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP. É graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica, em 1964, tendo apresentado como trabalho de conclusão A crítica da noção de democracia no pensamento de Emmanuel Mounier. Na Universidade Católica de São Paulo, cursou o doutorado, apresentando a tese Pessoa e Existência: os princípios ontológicos do personalismo de Emmanuel Mounier. É livre-docente em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Escreveu: A antropologia personalista de Emmanuel Mounier. São Paulo: Saraiva, 1974 e Pessoa e existência : Iniciação ao personalismo de Emmanuel Mounier. São Paulo: Autores Associados, 1983.

 IHU On-Line - Qual a importância e a atualidade do pensamento político de Mounier?

Antônio Joaquim Severino - O pensamento personalista, tanto em sua dimensão específicamente filosófica como em sua dimensão política, é, de fato, muito atual e, consequentemente, de grande relevância, tal a contribuição que pode dar para a compreensão, para a discussão e para a reorientação da realidade política contemporânea. O personalismo mounierista não é apenas uma filosofia teoricamente exigente, ele é também uma filosofia da práxis, que demanda um compromisso de reflexão e ação sobre a realidade histórico-social. Sem dúvida, ele herdou essa preocupação, tanto teórica como prática, também do marxismo, que muito influenciou Mounier.

 IHU On-Line - Quais foram suas grandes intuições filosóficas? O que Mounier teria a dizer à filosofia brasileira?

Antônio Joaquim Severino - Pode-se dizer que todo o pensamento de Mounier articula-se em torno de uma intuição básica, de natureza antropológica, qual seja, a da apreensão da pessoa humana, que se realiza como uma unidade dialética de imergência e transcendência. Essa condição existencial, além de configurar a especificidade da pessoa, atribui-lhe uma eminente dignidade. Com efeito, se, de um lado, a unidade da pessoa é a referência ontológica para a  devida compreensão de seu ser, a dignidade da pessoa humana é o ponto nuclear de sua axiologia, ou seja,  a referência maior de todos os valores, a fonte referencial de todos eles. Daí, todo o agir histórico dos homens, na sua tentativa de construção da história, bem como seu agir pessoal, têm sempre um parâmetro muito forte, em que pesem todas as dificuldades decorrentes da própria condição de ambivalência da nossa existência encarnada.

Mounier certamente diria aos pensadores brasileiros, responsáveis pela construção de mediações significativas para a construção de nossa história, que sua produção filosófica precisaria estar muito atenta às condições de encarnação e de transcendência das pessoas que formam esta sociedade. Que o apelo utópico que se põe no horizonte para o pensamento emancipador é o de transformar os indivíduos naturais em pessoas e de transformar as sociedades reificadas em comunidades de cidadãos livres, capazes de tomar seu destino histórico nas próprias mãos. Caberia aos filósofos brasileiros não construir sistemas de significantes abstratos mas de contribuir, com um pensamento criativo e crítico, para a leitura da opacidade social e histórica, lançando esclarecimento para sua superação, tendo sempre em vista a emancipação da sociedade, pela emancipação das pessoas no seu interior. A idéia que me parece muito forte no personalismo mounierista é que a razão de ser do conhecimento, o que lhe  dá sua legitimação, é seu intransigente compromisso com a construção da cidadania, entendida esta como aquela qualidade de vida que permite a todos existir concretamente, fruindo de todas as condições objetivas e subjetivas que constituem a própria infra-estrutura de nossa existência real.

 IHU On-Line – Que leitura faz do inconformismo em Mounier?

Antônio Joaquim Severino - Bem, as raízes do inconformismo de qualquer pessoa encontram-se numa particular sensibilidade que ela tem à violação histórica da dignidade do ser humano. Creio que não foi diferente com Mounier. Essa sensibilidade tem algo de inapreensível ao olhar analítico, algo muito profundo na personalidade do homem, mas sobre esse lastro desdobram-se outras fontes: a seriedade em se equipar com os recursos do conhecimento crítico, o compromisso em se servir bem desse precioso instrumento, a solidariedade com os oprimidos, os exemplos de outras personalidades igualmente compromissadas com a transformação da realidade.  Mounier fala muito da consciência que tomou, já de muito jovem, da insuficiência da civilização contemporânea, da necessidade conseqüente de se refazer o renascimento, criar uma nova civilização. Paradoxalmente, até a vivência pessoal da fé cristã  foi para ele uma fonte de exigência pela  superação da desordem estabelecida que ele considerava ser a verdadeira configuração do mundo contemporâneo.

IHU On-Line - O pensamento de Mounier pode inspirar uma reação à situação política vigente?

Antônio Joaquim Severino - Sem nenhuma dúvida. O personalismo tem um grande diferencial, pois, comprometido em sua essência com a dignidade da pessoa humana, ele pode lastrear uma ideologia mais universalizada e, como tal, pode fundamentar uma prática mais emancipatória. Isso implica, sim, uma crítica radical à situação política vigente, comprometida integralmente apenas com o ter, sem nenhuma preocupação com o ser. O ser humano foi reduzido à mera mercadoria ou, na melhor das hipóteses, em seu produtor técnico ou em seu consumidor voraz.  Como filosofia crítica da realidade histórico-social, ao mesmo tempo com o pensamento engajado na práxis transformadora, é claro que o personalismo tem tudo para subsidiar a superação  dessa desumanizante situação  política do mundo atual.

 IHU On-Line - As idéias do filósofo ajudariam a traçar perspectivas para a crise política brasileira?

Antônio Joaquim Severino - Suas idéias ajudariam a traçar perspectivas para crises políticas de qualquer sociedade onde o ser humano é manipulado, explorado, oprimido, como é bem o caso da sociedade brasileira, das sociedades latino-americanas e africanas e de tantas outras pelo mundo afora. De qualquer modo, a realidade social brasileira, em sua constituição histórica, que se iniciou sob o signo da escravidão, é bem a demonstração da violência cristalizada no tecido social e sua crise política atual nada mais é que uma decorrência dessas suas raízes.

 IHU On-Line - Quais as relações que estabeleceria entre os conceitos de liberdade e responsabilidade em Mounier e o pensamento sartreano?

Antônio Joaquim Severino - Mounier apreciava muito a contribuição do existencialismo sartreano, mas era severo na crítica que fazia ao pessimismo que o impregnava. Não concordava com aquela liberdade absolutizada, desvairada e altaneira, mas também sem rumo, que se dava o direito de não se comprometer com a necessária construção da história real. Para Mounier, a liberdade, maior galardão da transcendência humana, era também uma liberdade condicionada. E esse seu condicionamento lhe impunha muita responsabilidade.

IHU On-Line - Quais as relações que estabeleceria entre ética e liberdade no sistema de Mounier?

Antônio Joaquim Severino - Bem, preliminarmente, alerto que Mounier não queria que seu pensamento fosse considerado um "sistema" filosófico. Ele via aí a petrificação do pensar. Mas, esclarecimento à parte, a ética, para ele, pressupunha a liberdade, condicionada sem dúvida, mas que fazia a pessoa  responsável pelo seu agir. A eticidade da ação se configurava com base na articulação dialética da vontade e da liberdade, do lado da imanência, com seus condicionamentos existenciais; do lado da transcendência, com a eminente dignidade da pessoa humana, fonte de todos os valores que devem nortear nossas ações.

IHU On-Line - Qual foi sua contribuição na reflexão de uma identidade cristã?

Antônio Joaquim Severino - Na minha leitura, a grande contribuição que Mounier deu para a auto-reflexão cristã foi de colocar uma antropologia filosófica como base da prática histórica do cristão. De acordo com os pressupostos do personalismo, o verdadeiro cristão leva em conta, antes de mais nada, a condição real do ser humano como entidade natural e histórica. É tão somente sobre essa base que se pode acrescentar as dimensões trazidas pela revelação divina. O homem está, por sua própria condição, lançado no mundo, aí é sua casa. Mas poucos pensadores cristãos de sua época o acompanharam nessa trajetória, e, ainda hoje, certamente poucos o acompanhariam. A convergência de Mounier, com algumas teses do marxismo, advinha dessa sensibilidade à encarnação do homem. O mundo não é apenas um vale de lágrimas provisório mas o habitat real da humanidade.

 IHU On-Line - Levando em consideração a atuação política dos cristãos da época de Mounier, como o senhor percebe o posicionamento da Igreja hoje, diante da crescente problemática social no mundo?

Antônio Joaquim Severino - Com relação à Igreja Católica,  seu posicionamento ante a complexa problemática contemporânea do mundo é marcado por uma profunda omissão. Vem assumindo, sob a batuta dos últimos papados, uma atitude de fuga diante dos desafios históricos coletivos, recusando a posicionar-se de forma mais aberta e crítica contra a alastrante opressão causada pelo capitalismo hegemônico. Voltou-se para a cobrança de uma atitude meramente ética  dos católicos, não enfrentando o fato de que a ética, nos dias atuais, é necessariamente política. Desde seu tempo, o embate de Mounier com a instância eclesiástica  foi conflituoso, porque, para ele, o verdadeiro cristianismo exigia a superação da cristandade, com seus vieses e hipocrisias. A transformação do mundo capitalista num mundo melhor não se dará pela conversão pessoal e pela prática da caridade, mas pela realização da justiça. Todas as questões relacionadas com a condição humana têm de ser discutidas no horizonte da instauração da justiça como critério da convivência dos homens.

 IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum outro aspecto que não foi perguntado?

Antônio Joaquim Severino - Gostaria de destacar que, apesar do personalismo mounierista ter perdido bastante sua força filosófica nos contextos socioculturais do Ocidente, acusado que foi, como no Brasil, de ser um desdobramento do marxismo, de ser apropriado, em outros ambientes, como um pensamento liberal burguês, ele constitui, na verdade, um referencial filosófico de extrema relevância. Todas as conquistas teóricas que hoje têm ganhado reconhecimento no contexto da filosofia pós-moderna, por exemplo, foram antecipadas pelo personalismo na primeira metade do século. Entretanto, a humanidade jamais conseguirá superar seus graves problemas se não decidir apoiar-se numa concepção antropológica em que a dignidade do ser humano, como pessoa livre e encarnada, não torná-la referência norteadora de todas as suas ações, individuais e coletivas. Não se trata de elaborar novas metanarrativas, mas de reconhecer a dignidade humana como o valor-fonte para a ação que constrói a história.