Vilém Flusser, filósofo brasileiro?
VANICE RIBEIRO
Mestra em Filosofia/USP
Doutora em Filosofia/UNIFESP
Vilém Flusser nasceu em Praga em 1920. Em 1938 iniciou o curso de filosofia na Universidade Carolíngia, na antiga Tchecoslováquia, mas precisou sair do país para fugir do nazismo devido a sua origem judaica. Na ocasião, “os eslovacos declararam independência da Tchecoslováquia e ficaram do lado dos nazistas. No dia seguinte, os nazistas invadiram o que permanecia como República Tcheca (FINGER, 2008, p. 19). Imigrou com sua namorada e futura esposa, Edith Flusser, junto com os pais dela para a Inglaterra. No entanto, sob ameaça desse país também ser invadido por tropas nazistas, a família precisou seguir outro rumo. Foi então que os quatro conseguiram visto para o Brasil, depois de serem batizados cristãos, e chegaram no Rio de Janeiro de navio em 1940. Segundo Eva Batlickova (2010, p. 16)
Edith [...] conta sobre a viagem para o Brasil no navio ameaçado pelos submarinos alemães, desviando sua rota quase ao polo norte para evitar um choque que seria, sem dúvida, fatal. Vilém com a família de Edith conseguiram desembarcar no Brasil. Contudo, o navio foi afundado na sua volta para a Europa.
Prestes a desembarcar, Flusser recebe a notícia da morte de seu pai no campo de concentração de Buchenwald. Não apenas a notícia da morte de seu pai o abala, como também a lembrança de ter deixado sua família para trás: o pai de Flusser, Gustav Flusser, renomado professor de física da Universidade Carolíngia, aluno de Albert Einstein, não quis sair de Praga mesmo com a ameaça nazista. Sendo assim, Flusser seguiu viagem sozinho, com a família da namorada. Mais tarde, sua mãe, Melitta, e sua irmã, Ludovika, também morreriam no campo de concentração dois anos depois em Auschwitz.
A vida de Flusser no Brasil nos primeiros anos foi difícil. A sensação de estar “sem chão” – em alemão Bodenlos, termo que usa para se referir a esse sentimento, num sentido existencial – após ter perdido a família assassinada pelos nazistas e ter deixado sua terra natal fazia com que Flusser pensasse inclusive em suicídio. Era como se sua vida não tivesse mapas, não tivesse orientação alguma: encontrava-se num país que mal conhecia culturalmente, sem saber nada sobre o idioma português. Esse é o tom do que podemos considerar a filosofia flusseriana.
Ao longo de vinte anos morando em São Paulo Flusser trabalhou na empresa do sogro, a IRB – Indústrias Radioeletrônicas do Brasil, Ltda. Segundo conta sua esposa, trabalhava de dia e filosofava à noite sem jamais largar os livros. No entanto, cada vez mais a vida que levava como um empregado numa indústria o angustiava, pois precisava estabelecer contatos intelectuais. Foi assim que
Nos anos 50 as coisas melhoraram um pouco. Flusser [...] nunca deixou de procurar contatos na universidade. Os primeiros contactos que estabeleceu se transformaram em amigos, os mais importantes entres eles Vicente Ferreira da Silva e Dora Ferreira da Silva, Milton Vargas e Samson Flexor. (FINGER, 2008, p. 25)
Estabelecidos os contatos, Flusser começou a dar aulas em algumas universidades, mesmo sem ter terminado sua graduação em filosofia, já que naquele momento as indicações eram as portas para a carreira docente nas universidades brasileiras. Nas décadas de 50 e 60 no ambiente acadêmico brasileiro dificilmente questionariam a competência de um praguense, com formação cultural europeia e intelectualmente indiscutível, dada a formação de seu pai e seus estudos não completados em filosofia na Universidade Carolíngia. Assim, Flusser passou a colaborar para o Instituto Brasileiro de Filosofia, dirigido por Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva e outros, escola com viés heideggeriano, cuja proposta se distanciava do rigor acadêmico das universidades de filosofia da época; lecionou na EAD – Escola de Arte Dramática da USP, no curso de Comunicação da FAAP e a disciplina Filosofia da Ciência na Escola Politécnica da USP e no ITA – Instituto Tecnológico da Aeronáutica. Passou também a escrever para o Suplemento Literário de O Estado de São Paulo por intermédio de Décio de Almeida Prado.
Sua carreira intelectual começou a se consolidar e Flusser passou a produzir muitos ensaios filosóficos que mais tarde foram compilados. Em 1963 publica um livro escrito em português, Língua e realidade, inaugurando seu percurso filosófico com o tema em filosofia da linguagem. Outros dois logo depois foram lançados: História do diabo, em 1965, que é uma metáfora da civilização ocidental, e Da religiosidade, em 1967. Flusser já havia se tornado uma figura pública e conhecida no meio intelectual paulista e eventualmente promovia encontros no terraço de sua casa com alunos e amigos para discutirem filosofia.
Após o golpe militar de 1964 ocorreram algumas mudanças na vida ao autor. A instabilidade no ambiente acadêmico fez com que Flusser fosse afastado da universidade e voltasse para a Europa. Deixando o Brasil para trás, busca assumir uma vida apátrida. Para alguns não ficou evidente a postura de Flusser em relação à ditadura que se instalou no Brasil, não houve um posicionamento nítido, sobretudo no ambiente intelectual, pois parecia não compreender a ditadura como uma profunda ameaça à democracia, segundo relato do Prof. José Arthur Giannotti (GIANNOTTI; MENDES, 1999) em vídeo produzido no final dos anos 90 para um documentário sobre Flusser, disponível no YouTube – endereço do vídeo nas referências do presente artigo. Entretanto, conforme Flusser afirma em sua autobiografia Bodenlos (2007), escrita nos anos 70, já morando fora do Brasil, a ditadura foi uma vitória da tecnocracia e a pátria que se instaurava com isso seria “um aparelho gigantesco e progressivo que, em termos de inépcia, patriotismo e preconceitos patrióticos não ficaria atrás de nenhuma pátria europeia” (FLUSSER, 2007, p. 308). Diante dessa frustração, há uma guinada para a apatricidade, uma vontade de renúncia a qualquer identidade pátria, e agora com a esposa e os filhos, decide deixar São Paulo e morar em Robion na França para depois se estabelecer em Berlim, onde ficou de fato conhecido.
A produção flusseriana pode ser dividida em dois momentos: o primeiro está relacionado ao período brasileiro, quando escreveu sobre filosofia da linguagem e religiosidade. O segundo é o período em que Flusser se torna o filósofo da mídia, com a publicação de Filosofia da caixa preta – ensaios para uma futura filosofia da fotografia, em 1983, seu livro mais famoso.
Nesse período Flusser passa a escrever primeiro em alemão e depois traduz seus textos para outras línguas, as quais ele domina, como o português, o inglês e o francês. Nunca escreveu nem traduziu nada para o tcheco, sua primeira língua materna, a segunda considerava o português. A Filosofia da caixa preta, “foi o primeiro livro que saiu na Alemanha e também o primeiro livro que despertou o interesse internacional, trazendo-lhe a fama como o teórico da mídia” (BATLICKOVA, 2010, p. 18). No mesmo ano de publicação de A Filosofia da caixa preta na Alemanha, em 1983, foi publicado no Brasil Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar, ensaios que tratam sobre a sociedade dos aparelhos, das imagens técnicas e do programa. Com o desenvolvimento desses conceitos Flusser é consagrado como o filósofo do design, da fotografia e dos media.
Pelo fato de Flusser ser um poliglota, uma característica de sua filosofia é o método de tradução. O autor costumava traduzir seus textos como uma forma própria de criação filosófica. Passar de uma língua para outra é um processo não somente textual, como também existencial. O processo de autotradução permite pensar novas interpretações do texto, possibilita a visão de diferentes realidades. A edição em português do texto A Filosofia da caixa preta foi traduzida pelo próprio autor.
Em 1991 Flusser aceitou um convite para ministrar uma palestra em Praga e havia muito tempo não visitava sua cidade natal. Durante a palestra, conta sua esposa, Flusser ficou tão emocionado que chegou a trocar o tcheco pelo português fazendo com que seus ouvintes não entendessem nada do que estava falando, tendo Edith que avisá-lo. Depois da palestra os dois fizeram um piquenique e na volta para a Alemanha, na estrada, Flusser morre num acidente de carro. Sua esposa sobrevive.
Podemos considerar Vilém Flusser um escritor brasileiro, jogando luz para a primeira fase de sua produção, quando morava no Brasil. Ainda que a segunda fase seja a referência discutida no espaço acadêmico estrangeiro, inclusive por questões idiomáticas – na primeira fase há muita produção em língua portuguesa – esse momento foi significativo para que, mais tarde, o autor se tornasse o teórico dos media que contribuiu para se pensar a sociedade contemporânea ocidental.
Referências bibliográficas:
ATLICKOVA, E. A Época brasileira de Vilém Flusser. São Paulo: Annablume, 2010.
FINGER, A. As Redes de Flusser. Vilém Flusser. Uma Introdução. São Paulo: Annablume, 2008.
FLUSSER, V. Bodenlos. Uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007.
________. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2004.
________. Língua e realidade. São Paulo: É Realizações, 2021.
MENDES, R. A. Entrevista com José Giannotti. Arquivo Vilém Flusser São Paulo. Vídeo. 02 mar. 1999. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v