Sobre a escravização dos africanos
Nenhuma linguagem pode descrever adequadamente o que o supremacismo branco fez à humanidade do Africano durante a era da Europa (1492 a 1900).
No discurso Europeu, homem (com capital) era primeiramente loiro de olhos azuis. Africanos e seus descendentes da diáspora ocupavam a base da hierarquia. Portanto não é surpreendente que no começo do século dezoito a racionalização ideológica da escravidão Africana contou cada vez mais com formulações “científicas” da “raça” Ben Magubane
Neste mês de maio, a abolição formal da escravidão africana no Brasil completou cento e dezesseis anos. Tendo em vista esse fato, creio ser importante refletir sobre o bárbaro fenômeno que foi a escravização de africanos, pois ainda hoje os seus descendentes não são considerados plenamente humanos. Tal afirmação pode ser demonstrada facilmente recorrendo-se ao singelo fato de que até o momento não houve reparação aos descendentes das vítimas de tamanha atrocidade.
O processo de migração forçada que foi imposto aos povos africanos não tem paralelo nenhum na história da humanidade. Nada comparável aconteceu a nenhum outro povo.Os europeus, para realizar tamanha atrocidade, tiveram que vencer as intempéries marítimas, construir portos, dividir os povos africanos, promovendo durante três séculos o maior genocídio que a história conheceu. Isto sem contar a destruição de impérios, culturas, famílias – que, juntamente com racismo e o imperialismo, são os responsáveis pelo estado de miséria atual da África – e o horrendo legado histórico que foi deixado aos africanos da diáspora, que vivem na “Civilização Ocidental”, melhor seria dizer, “Barbárie Ocidental”, de viver em sociedades democráticas como cidadãos de terceira classe. Estima-se que dez a cem milhões de africanos tenham sido vitimados.
Desse modo, surge uma questão inevitável: por que os africanos? Esta questão se agrava ainda mais se a colocamos, como brilhantemente faz Molefi Kete Asante, em seu artigo The Ideology of Racial Hierarchy and the Construçtion of the European Slave Trade, do ponto de vista da história da humanidade. Ele a coloca da seguinte forma: “Foi no continente Africano que a humanidade se originou e no mesmo continente a mais majestosa civilização da antiguidade apareceu no Vale do Nilo (Diop, 1991). Também foi na África que o primeiro florescimento da religião ocorreu e, mesmo a nomeação dos deuses, foi dito ser um evento Africano (Heródoto, livro II). Os poderosos reinos do Oeste e do Sul desenvolveram-se e mantiveram-se por séculos sem a presença de Árabes ou Europeus. Então, a questão a ser levantada é: Por que os Africanos tornaram-se objetos do Comércio de Escravos Europeu?”
Antes de responder a questão acima é importante ressaltar que na antiguidade a Europa era entendida como o incivilizado, não-político e não-humano. A imagem que temos hoje da Europa como “moderna” e “ocidental” é uma invenção recente dos românticos racistas alemães. Enrique Dussel, em seu artigo Europa, Modernidad y Eurocentrismo nos oferece uma extensa discussão da questão.
Voltando a nossa questão, pensamos que a resposta mais comum dada a ela, a qual sustenta a teoria de que os africanos foram escravizados, principalmente por razões econômicas, ou seja, pela necessidade que os europeus tinham de desenvolver as terras que eles invadiram – que hoje são conhecidas como Américas e Caribe – e o fato de fracassar a exploração indígena não é a mais adequada. Isso porque não me parece razoável supor que somente razões econômicas sejam suficientes para explicar a torpeza moral de transformar seres humanos em coisas. Dito de outra forma: A necessidade de desenvolver as terras invadidas é motivo suficiente para transformar os criadores da civilização em escravos?
A escravidão, nessa época, era um fenômeno social que estava se extinguindo na Europa. Todas as formas anteriores de escravidão conhecidas – exceção da escravidão que os Árabes promoveram na África a partir do século III e que provavelmente legou à Europa o conceito de escravidão racial – não possuíam implicação racial. A cultura européia e africana que se confrontaram nos séculos XV e XVI tinha desenvolvimento tecnológico semelhante, o diferencial é que os europeus possuíam os meios de violência para conquistar os africanos. Esse ponto deve ser ressaltado, pois, como bem enfatiza Molefi Asante, nenhum escravo foi raptado da África. Somente pessoas foram e os europeus tinham consciência disso. Portanto, estamos diante de algo.
novo, mais brutal e intencional. Não é à toa que a legitimação da escravidão feita por Locke, na qual o senhor passa a ter autoridade e poder absoluto sobre o escravo, faz a legitimação de Aristóteles parecer paternalista, como bem observa o filósofo da libertação Franz Hinkelammert.(1) Ademais, sabemos que africanos foram capturados e trazidos para Portugal antes das viagens marítimas de Colombo.
Como explicar tamanha torpeza moral? Entendemos que a ideologia do supremacismo branco que sustenta que o branco (europeu) é a forma mais perfeita do homem – e o desejo de construir uma civilização sob este fundamento, ou seja, hierarquizada, em conjunto com as necessidades econômicas, leia-se desejo de riqueza, e o desejo de poder explicam de forma mais satisfatória o Holocausto. Isso porque, para desenvolver uma construção social assassina, como foi o tráfico de africanos, é preciso que de antemão se esteja convencido da inferioridade das vítimas. Se os europeus considerassem os africanos como seres humanos iguais a si próprios, tal construção social jamais existiria.
A crença da superioridade européia em relação aos africanos, ao contrário do que correntemente se pensa, é anterior ao Holocausto da Escravidão. Muito antes de se lançar à caça de africanos, os europeus já se consideravam humanos superiores. A maldição de Cam, que forneceu todos os conceitos utilizados pela Igreja Católica na justificação da escravidão, tem origem provavelmente na perseguição que, segundo a Bíblia, os Egípcios – Africanos filhos de Cam – infligiram aos Israelitas, portanto, muito anterior ao tráfico de escravos.(2)
O discurso embutido na maldição de Cam, que contribuiu para formação da identidade do europeu, continuou, ao longo da história da escravidão, sendo desenvolvido e refinado, pois o Holocausto – que manchava os belos ideais proclamados por esta civilização – necessitava de argumentos que justificassem as atrocidades que estavam sendo cometidas. Porém, quando o discurso religioso começou a perder legitimidade, representantes intelectuais da Barbárie Ocidental, como Hume, Kant, Montesquieu, Voltaire, este inclusive traficante de africanos, entre outros, desenvolveram a ideologia do supremacismo branco, e seu corolário lógico a doutrina da inferioridade negra. Uma verdadeira declaração de guerra contra os africanos que culminou com o historicídio de Hegel. Cremos que qualquer explicação do Holocausto Africano que não leve em conta este projeto explica apenas parcialmente o fenômeno.
É importante que reconheçamos a ideologia do supremacismo branco como um dos fundamentos desta civilização, porque hoje ela se atualiza no projeto de globalização neoliberal em curso no mundo. Sabemos que aproximadamente 20% da humanidade, na sua esmagadora maioria brancos euro-americanos, têm acesso a todos os bens materiais produzidos no mundo, e a grande maioria da população mundial, composta na sua grande maioria de árabes, africanos, asiáticos, indígenas, ou seja, não brancos, está sendo excluída do acesso desses bens. Um projeto político, econômico e social que exclui 3/4 da humanidade do acesso aos bens materiais que são produzidos, inclusive alimentos, só pode ser implantado e mantido sem causar escândalo se as vítimas do mesmo não são consideradas tão humanas.
Assim, não causa escândalo o fato de os africanos estarem sendo dizimados pela Aids, e muito menos os seus descendentes da diáspora morrerem diariamente vítimas da situação de extrema pobreza em que vivem. Se a pandemia de Aids que assola a África acontecesse na Europa teríamos uma comoção mundial.
Neste mês de maio, em que a Abolição da Escravidão no Brasil completa cento e dezesseis anos, devemos compreender bem esse triste evento de nossa história e seu legado, para que possamos sepultar para sempre essa doutrina que hierarquiza seres humanos.
Ricardo Matheus Benedicto
Mestre em Filosofia pela PUC/SP
_________________________
[1] No livro de Gênesis, cap. 9 versículos 18-28 lemos: Os filhos de Noé , que saíram da arca, foram este: Sem, Cam e Jafé; e Cam é o antepassado de Canaã. Esses três formam os filhos de Noé, e a partir deles foi povoada a terra inteira.
Noé, que era lavrador, plantou a primeira vinha. Bebeu o vinho, embriagou-se e ficou nu dentro de uma tenda. Cam, o antepassado de Canaã, viu seu pai nu e saiu para contar a seus dois irmãos. Sem e Jafé, porém, tomaram o manto, puseram-no sobre seus próprios ombros e andando de costas, cobriram a nudez do pai; como estavam de costas, não viram a nudez do pai. Quando Noé acordou da embriaguez, ficou sabendo o que seu filho mais jovem tinha feito. E disse: “Maldito seja Canaã. Que ele seja o último dos escravos para seus irmãos”. E continuou: “ Seja bendito Javé, o Deus de Sem, e que Canaã seja escravo de Sem. Que Deus faça Jafé prosperar, que ele more nas tendas de Sem, e Canaã seja seu escravo”.
Ver também Cheikh Anta Diop, The African Origin of Civilization Mith or Reality, Lawrence & Hill, 1974, cap. 1.