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O Processo Inquisitório de Galileu – 1ª Parte

 

            É fato que até os 50 anos de idade, Galileu deu pouca importância ao copernicanismo, pois ainda no período paduano vigoram as suas investigações mecânicas sobre o movimento.

            Porém, a partir de 1610, com a divulgação do Sidereus Nuncius (Mensageiro das Estrelas), inicia o período polêmico em que Galileu tenta adaptar suas concepções mecânicas do movimento às observações astronômicas, com o intuito de destruir o mundo físico aristotélico.

            Ao se deparar com as manchas solares, as crateras e montes lunares por intermédio do telescópio, que acabara de aperfeiçoar, Galileu pôs em dúvida a divisão de mundo estipulada por Platão. Se já não fazia mais sentido falar em mundos sub e supralunar, por que, então, continuar sustentando a filosofia natural de Aristóteles em que um corpo mais pesado tem velocidade de queda maior que o leve? O cosmo fechado dos gregos, de acordo com Galileu, deve ceder espaço ao heliocentrismo do Revolutionibus de Copérnico, explicitando a rotação da Terra para explanar movimento diário. No entanto, é preciso vencer um grande obstáculo, a cultura da contra-reforma imposta pela Igreja Católica que concebia o princípio de autoridade da física aristotélica como a interpretação sensata para explicar o movimento dos planetas.

            Ora, na fase primeira do período polêmico, de 1610 e 16167, “Galileu fez vigorosa defesa da liberdade da pesquisa científica e da universalidade da razão”.(1) No Sidereus Nuncius, Galileu expressa as novas observações que realizou nos céus com seus óculos especiais, e em grande medida denotam um caráter eminentemente propagandístico em relação ao copernicanismo. A reação crítica aos apontamentos astronômicos elaborados por Galileu - principalmente acerca das manchas solares - se deu imediatamente. As instituições universitárias italianas eram compostas por aristotélicos, refletindo suas posições conservadoras de matemáticos e astrônomos, como Antonio Magini de Bolonha, conta o copernicanismo. As refutações sobre as manchas solares, descoberta por Galileu, passa a ser executada pelo padre jesuíta Cristopher Scheiner , e tem como ponto prioritário o fato de que é preciso desconfiar do telescópio como revelador de certas características dos objetos celestes, que não se apresentam a olho nu. A principal indagação de Scheiner contra as manchas aponta na direção de sustentar que o próprio telescópio é causa das manchas em várias partes do sol. Além disso, Scheiner introduz uma hipótese desprovida de evidências empíricas, segundo Galileu de que “as manchas são sombras projetadas sobre a superfície do sol por um enxame de pequenos corpos opacos que, à semelhança de minúsculos planetas, giram em torno do sol”.(2)

            Da mesma forma, Galileu e Orazio Grassi, outro padre jesuíta da Itália, se confrontam nas especulações sobre os cometas. De acordo com os historiadores da ciência, as querelas sobre as manchas solares e os cometas dizem respeito praticamente aos mesmos assuntos. Faz parte da estratégia dos jesuítas derrotar Galileu nestas duas discussões, como também desgastá-lo. O projeto jesuítico se alicerça na alteração do currículo dos humanistas que pregavam uma autonomia radical da radical da razão. Os jesuítas inverteram tal modelo de conceber o mundo através da questão da autoridade, calcada, sobretudo, na infalibilidade papal. O papa Paulo III foi o artífice deste programa jesuíta, instalando nos limites dos países, onde se propagou a reforma protestante, colégios e universidades com orientação contra-reformista.

É na onda da contra-reforma que Galileu, ao tentar analisar a controversa passagem bíblica em que Josué pede a Deus para que prolongue o dia, interrompendo o movimento do sol, para que os hebreus fugissem do Egito, atrai a ira dos aristotélicos. A carta de Galilleu a Benedetto Castelli (3), discípulo e professor de matemática na universidade de Pisa, é uma resposta às indagações que discutem se esta passagem está ou não de acordo com o sistema ptolomaico ou copernicano.

Na verdade, Galileu conclui que o raciocínio acerca desse caso recai diretamente ao sistema heliocêntrico de Copérnico. A visão de mundo copernicana estava em evidência de maneira negativa. Não se aceitava que tal modelo pudesse se sobrepor ao geocentrismo de Ptolomeu. Então, as Sagradas Escrituras estariam equivocadas? Deus nos enganou sobre esta passagem?

Galileu está tranqüilo quanto ao fato de que urge a necessidade de não se confundir ciência, no caso astronomia, e religião. Vamos aos argumentos que Galileu expõe na carta, a partir das lamúrias de Cristina de Lorena, rainha da Suécia e Castelli.

“Consideremos, por ora, que as palavras do texto sacro devem ser tomadas exatamente em seu sentido literal, isto é, que Deus, atendendo às preces de Josué, detivera o sol e prolongara o dia, em virtude do que este conseguiu a vitória, mas exigindo eu, ainda que idêntica determinação de ater-se ao significado literal vigore também para mim, a fim de que o adversário não presuma uma possível liberdade de poder alterar ou mudar os significados das palavras: afirmo que esta passagem nos mostra manifestamente a falsidade e a impossibilidade do sistema de Aristóteles e Ptolomeu e que, ao contrário, se adapta perfeitamente ao de Copérnico”.(4)

Para Galileu é manifesto neste trecho que não se deve interpretar literalmente muitas passagens contidas na Bíblia, e deve-se levar em conta a de Josué. A dificuldade da interpretação direta da Bíblia, por sua vez, é explicada pelo viés da manipulação deliberada por Deus dos termos e expressões no instante em que os escribas expõem os fatos. Segundo Galileu, “Encontramos na Sagrada Escritura muitas proposições que têm aspecto literal diferente do verdadeiro, mas que estão redigidas para acomodarem-se à capacidade de entendimento do povo”.(5)

Assim, se Josué,complementa Galileu, implora a Deus para paralisar o movimento do sol, tomando como ponto básico o sistema ptolomaico, só haveria um entardecer muito rápido, pois, o que manipula o movimento do sol é a primeira esfera ao qual está fixado, encurtando, conseqüentemente, o dia.

Por outro lado, as descobertas no Mensageiro das Estrelas trazemavalorização do exercício do poder do sol em relação aos demais planetas não “somente como instrumento e regente do máximo da natureza, quase coração do mundo, dê não somente, como claramente dá, a luz, mas também o movimento dos planetas que giram em torno do sol”.(6) Desta maneira, basta parar o sol para que o movimento diário da terra também cesse, prolongando, portanto, o dia, como desejava Josué.

Talvez, Cristina de Lorena, Padre Castelli e demais leitores tenham ficado contentes com o fato de que o pedido de Josué a Deus tenha sido descrito de modo fiel pelos escribas. Entretanto, inicia-se o período polêmico em que Galileu é agora obrigado a se deparar com inúmeras discordâncias da Igreja, principalmente ao lançar Os Dois Máximos Sistemas de Mundo, cuja característica fundamental é a defesa expressa das concepções copernicanas.

Portanto, na segunda parte do presente artigo analisaremos as estratégias delineadas por Galileu Galilei no sentido de provar o movimento da Terra, nesta obra, contrapondo-se às proposições aristotélicas, e como Galileu é obrigado a se esquivar da pressão inquisitória em relação a tal concepção, orquestrada principalmente pelos peripatéticos. Não se esquecendo os vários traslados de Galileu à Roma para responder os processos de heresia feitos pela própria Igreja.

Paulo César Gomes de Souza

Mestrando em Filosofia da Ciência  Unicamp

 

Bibliografia

Galilei, Galileu. Ciência e Fé, Istituto Italiano di Cultura/ Nova Stella, São Paulo, 1988.

Pablo, Mariconda. “O Diálogo de Galileu e a Condenação” in: Cadernos de História e Filosofia da Ciência. Vol. 10, n1, jan-jun. 2000

 

1 Revista da Unicamp de História da Ciência, p. 80.

2 Id. Ib., p. 83.

3 Carta de 21 de dezembro de 1613.

4 Galileu Galilei, Carta a Benedetto Castelli, p. 22.

5 Id. Ib. p. 18.

6 Id. Ib. p.24.

 

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