Artefato Cultural - entrevista com Gilberto Mendes
“Nunca se foi tão ignorante”
O gigante Gilberto Mendes, maestro, compositor de altíssima qualidade, deu-nos a honra de uma entrevista exclusiva. Durante algumas horas, em meio a batuques na mesa e na cadeira, ele falou sobre sua vida, sua carreira e sobre o conceito de cultura.
Além de criticar os jornalistas atuais, achando-os incultos etc...
Artefato Cultural: Fale um pouco sobre como o senhor começou com a música...
Gilberto Mendes: Eu sou de uma família que gosta de música, embora se saiba que só um avô meu tocava violão. Meu pai morreu quando eu tinha cinco anos, minha mãe teve muitas dificuldades financeiras, e estudar música era complicado, o piano custa muito caro. Mas eu sempre brinquei muito de fazer música. Depois que eu me formei no ginásio, fui estudar Direito em São Paulo, fiz dois anos, mudei para Sociologia, mas não passei. Um cunhado meu, na época, me perguntava por que eu ficava estudando aquelas coisas se eu era músico. Ele me convidou para morar com ele, na Ponta da Praia, e eu entrei no Conservatório de Música, aos 19 anos... mas eu tenho 83 anos agora, se eu for contar toda a minha vida...
AC: O senhor me fez lembrar do embaixador Vasco Mariz, que tem quase a sua idade, e publicou alguns livros sobre música... inclusive ele cita o senhor nos livros dele...
GM: É... o maior livro dele tem um capítulo só a meu respeito...
AC: E quais foram os autores que influenciaram o senhor?
GM: (Risos) Eu sou uma pessoa extremamente aberta, talvez por viver em frente ao mar, sempre morei na praia. O mar é aberto, então eu recebi todas as influências da história da música, fora das outras culturas. Eu sempre fui muito vidrado na música popular norte-americana. Comecei a gostar da música brasileira a partir da bossa-nova, que era parecida com a norte-americana. Bom, inicialmente, os compositores que me influenciaram foram aqueles de quando eu comecei a tocar piano... Bach (B-A-C-H) e Schumann (S-C-H-U-M-A-N-N). Compositores do período barroco e período romântico. Inicialmente eles, depois Bartok (B-A-R-T-O-K), contemporâneo, e, naturalmente, também Chopin (C-H-O-P-I-N). Vocês jornalistas, hoje em dia, são incultos, não é? Por quê? Jornalista tem que saber de tudo, sabia?
AC: Sim, um pouco de tudo, mas é que eu sou muito mais ligada à área de Literatura...
GM: Errado. Eu não sou ligado à área de Literatura, embora escrevi um livro e agora estou escrevendo outro. Sou capaz de fazer uma conferência sobre Literatura. A gente deve ser especialista em alguma coisa, mas deve conhecer do resto...
AC: Mas o senhor está falando isto porque acha que eu não sei escrever estes nomes?
GM: Não. Os jornalistas, veja bem, não estou falando só de você. É uma tendência do jornalismo atual que não era do jornalismo antigo. Entendeu? Você é novinha, você pode ir aprendendo isso. Procura saber de tudo um pouco. Não é só porque é literato que não precisa saber de música. E músico é a pior categoria... os músicos são muito ignorantes, só falam de música... não é o meu caso, graças a Deus.
AC: A função do repórter qual é? Reportar a informação e passar para o leitor...
GM: Mas tem que ter um lastro mínimo de informação. Leia todos os dias os principais jornais do país, do Rio e de São Paulo. Tem que ler jornal...
AC: Claro...
GM: Tem que estar informado do que se passa por aí. Os jornalistas antigos, a primeira coisa que faziam quando entravam na redação era isso... esse sermão eu faço sempre para os jornalistas... uma espécie de catequese...
AC: Tudo é válido...
GM: Me desculpe. Às vezes você pode ficar chateada, né?
AC: Não... tem gente pior do que eu...
GM: Eu estou achando que você está ótima... estou só lembrando isso, que é legal que as pessoas sejam bem amplas... é que eu estou notando que, hoje em dia, há muita especialização... no meu tempo não era assim... e não é só isso, não, eu já sentei em mesa com a Ligia Fagundes Telles e o Guarnieri, autor teatral, e simplesmente eles nunca ouviram falar em mim...
AC: Então!
GM: Mas há anos que eu sei dos dois! E eu saio tanto nos jornais quanto eles...
AC: E eles são antigos...
GM: São antigos...
AC: O senhor está dizendo que antigamente os jornalistas eram mais cultos...
GM: É, os jornalistas eram mais cultos. Na realidade, pode ser que eu esteja enganado... é que eu conheci um jornalista que era fantástico, o Geraldo Ferraz...
AC: Marido da Pagu...
GM: Sim. Ele era um homem que participava de júris, de bienais... ele dizia para mim “eu não entendo nada de música”... mas ele pressentia aquilo que eu fazia... era interessante... dava todo o apoio... a gente deve ser assim... se a gente não entende, tem que ter um desconfiômetro, tem que desconfiar...
AC: Intuição, o senhor diz...
GM: Mas você tem! Você está vindo aqui. Você tem desconfiômetro. É isso o que eu digo. Os jornalistas, hoje, têm pouco disso. Porque é uma praxe a especialização... tem que procurar as coisas, né?
AC: É porque também é uma questão de má-formação, né? Educação...
GM: O que é engraçado, pois nós estamos na era da informação, da internet, nós temos aí todos os museus do mundo, todas as bibliotecas disponíveis... e nunca se foi tão ignorante... O excesso de informação desvalorizou a informação.
AC: Mas é exatamente por isso que a gente está com o site... para que nós possamos trazer essas pessoas à tona e oferecer um veículo de informação rápido, barato, com qualidade, para os internautas... este é o objetivo do site...
GM: É uma revista, o que é?
AC: É uma revista eletrônica.
GM: Como é que se chama? Blog, não?
AC: Não, não. É um site, mesmo, uma revista on-line. Blog é outra coisa, como se fosse um diário.(Parada na entrevista para Gilberto atender ao telefone)
GM: Então, isso tudo isso eu fui assimilando, eu estou sempre assimilando coisas, e a minha música é uma mistura de tudo o que eu venho assimilando através dos tempos.
AC: Inclusive, o livro do senhor, eu o folheei lá na Martins Fontes... me pareceu bastante interessante...
GM: É... as pessoas gostam de ler, mesmo quem não é músico... eu estou fazendo o segundo livro, uma espécie de continuação daquele, pois já se passaram uns 15 anos, então, muita coisa aconteceu...
AC: Então vai ser uma reedição?
GM: O editor, da Edusp, falou que, se ficar pequeno, a gente reedita aquele, ampliado. Se ficar grande, a gente faz outro livro...
AC: E tem previsão de lançamento?
GM: Não... por quê?
AC: Para saber.
GM: Não, porque eu parei, poderia estar até pronto, mas eu recebi uma encomenda da OSESP [Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo] e aí eu parei tudo, pois é menos de um ano para fazer... mas agora eu retomei o livro. Mas vamos voltar às perguntas...
AC: O senhor acha possível estabelecer uma faculdade de música na Baixada?
GM: Claro. É sempre possível é só querer. Há coisas que não são feitas só porque não querem, porque as políticas do momento não querem, porque é plenamente possível. Santos teve, inclusive, uma faculdade de música que foi criada pelo velho Conservatório Musical de Santos, onde eu estudei e dei aula. Mais tarde fecharam, cometeram este crime numa cidade marcada pela música, com dois compositores que pegaram nome, Almeida Prado e eu, faço esse Festival de Música Nova, o festival mais importante do Brasil de música contemporânea, e não tem uma faculdade de música, uma coisa vergonhosa para a Cidade. É que só vêem cifrão na frente...
AC: Infelizmente... mas em que bairro de Santos o senhor nasceu?
GM: Nasci na Avenida Conselheiro Nébias, 809. Nasci em casa. Meu pai era médico, ele quem fez o parto da minha mãe.
AC: E o senhor ficou lá até que idade?
GM: Até uns quatro anos e meio, quando meu pai morreu. Aí fomos para São Paulo, dois anos, mais ou menos, 1929 e 30. (Gilberto pára a entrevista para conversar com a esposa)
AC: Seus artigos em A Tribuna nunca foram publicados em livro?
GM: Nunca. Nem os que eu escrevi para o Estadão.
AC: Que pena.
GM: O quê?
AC: Nunca terem sido publicados em livro.
GM: Precisa alguém fazer isso: juntar e ir atrás de um editor, mas eu não tive tempo até hoje.
AC: Bom... agora, Santos. A situação da Cultura em Santos.
GM: Santos é uma cidade que tem uma tradição fortíssima de cinema, tem tradição de várias coisas, de teatro, nem se fala. Vários artistas que têm aí saíram de Santos, a Cacilda Becker foi minha colega de classe no Colégio José Bonifácio, eu gostava de ver os desenhos dela, ela desenhava bonito... e Santos tem tradição de música, fortíssima, e cinema, não é que tenha tradição de fazer cinema, mas de amor ao cinema, grande. Teve um dos clubes de cinema mais importantes do Brasil, mais antigos, do qual eu fui um dos sócio-fundadores, foi mais ou menos no fim dos anos 40 que a gente fundou o clube do cinema. [...] O Maurice Legeard, por exemplo, foi uma figura folclórica... ele ficou sendo a alma desse clube de cinema de Santos, aí, depois, ele fundou o que chamam de cinemateca, mas eram coisas, assim, particulares. [...] Santos é uma cidade fornecedora de talentos para São Paulo. É até natural, os artistas vão para São Paulo, para o Rio, isso acontece, mas pode manter um nucleozinho. Londrina, por exemplo, não é São Paulo, nem Rio de Janeiro, e está inaugurando um festival de teatro. Santos é que tinha de fazer isso... poderia ganhar com turismo, até. [...] O Almeida Prado... ninguém mais sabe que ele é santista.
AC: O que poderia ser feito para incentivar o jovem a gostar da música sinfônica?
GM: Gostar das artes é, praticamente, freqüentar as artes. Agora, esse freqüentar as artes só pode ser possível através de entidades que dêem um jeito para que as pessoas freqüentem as artes, tem que haver exibições de artes plásticas em abundância, muitos concertos e maneiras de leva, seduzir o povão mais assim, que vive à margem disso, ver essas coisas, porque eles nem sabem da existência. E, quando, ocasionalmente, eles vêem, eles gostam muito. [...] Antigamente, nas rádios, tocava-se música clássica; toda rádio, por mais comercial que fosse, tinha um programa de meia hora de música clássica.
AC: O que o senhor classifica como alta cultura?
GM: É a cultura erudita, fruto de um acúmulo grande de conhecimento. Parece classista, até, mas que tem um fundo técnico certo. A cultura popular é uma cultura instintiva, fruto de um conhecimento espontâneo, natural, um dom, mas que é feita de maneira que não exclui, em absoluto, o seu valor. É um tipo de cultura. Eu gosto muito das artes populares, não das artes urbanas, que já está muito contaminada pela indústria cultural, que visa o lucro. É uma diferença de natureza... bastante... como eu diria? Técnica, talvez. Para compor uma música erudita, por exemplo, você tem que saber uma montanha de coisas... só que esta diferença entre o erudito e o popular não diz respeito à qualidade...
AC: A sua música é alta cultura?
GM: Altíssima. Porque é de vanguarda, ainda. Mexe com o pior do abstrato.
AC: E como o senhor classificaria a música nova, hoje?
GM: Vamos botar só dois nomes nisso aí: música popular e música erudita. Aliás, é a única arte que tem essa divisão; você não diz pintura popular e pintura erudita, não diz literatura popular e literatura erudita... mas qual era a pergunta?
AC: Como o senhor classifica a música nova?
GM: O que dizem da música são os dois níveis, é a tal da alta cultura e da cultura popular. A cultura popular é o que podemos chamar de cultura analfabeta, mas que é uma cultura. E a outra é uma cultura alfabetizada, altamente alfabetizada, o equivalente, por exemplo, ao cordel e à literatura de alto repertório. São feitas em níveis muito diferentes. Como a nossa língua, se você se formou, é estudado, você tem um modo de falar diferente da pessoa que não estudou nada, mas ele pode ter muito sabor naquele modo de falar, mas, no fundo é a mesma língua. Música, na verdade, é uma coisa só, mas essa música falada, bem simples, sem conhecimentos técnicos, é a música popular. E a música erudita precisa de um acúmulo de conhecimento que vem da Grécia antiga. Foi na Grécia que se estruturou fisicamente as diferenças entre os tons dó, ré, mi... o som é uma coisa matizada; para compor em cima disso, você precisa estabelecer sistemas, divisões. Há um lado totalmente científico; o erudito daí... Ficou muito difícil?
AC: Não, ficou bem explicado.
GM: A palavra elite, que todo mundo acha horrível, vem de escolher, eleger, é a arte de escolher...
AC: Ás vezes, a pessoa não tem muita escolha...
GM: Mas essa palavra pegou uma outra conotação, mas tem um sentido bem simples... eu sou um elitista, sou favorável à arte da escolha...
AC: Mas, às vezes, a pessoa não tem opção...
GM: Não se dá opção às pessoas. A alta cultura sempre esteve com a classe dominante, que tem dinheiro e possibilidade de educação e acesso ao conhecimento. Antigamente, na época dos monarcas, a classe culta, que gostava da arte, fazia dos artistas seus empregados, mas os protegia e os sustentava. A burguesia, que substituiu a realeza, lentamente passou a querer só uma coisa: dinheiro. E o governo, lentamente passa para as mãos de pessoas absolutamente sem interesse em cultura e arte. É o que se vê hoje em dia...
Colaboração Marcelo Ariel