Filosofia e Ciência
Vinicius Carvalho da Silva
Mestrando em Filosofia da Ciência pela UERJ
São numerosos os aspectos filosóficos que podemos apontar na ciência, e em nosso caso, na física propriamente dita. Em um plano paradigmático, ou seja, naquela visão que a própria ciência tem de si mesma, da natureza, e de seu próprio empreendimento,
destacaremos três; a ontologia materialista, o realismo científico, e o antirrealismo. O materialismo, que remonta aos filósofos da Grécia Antiga, perpassa toda historia da ciência, como o pressuposto compartilhado pela comunidade científica, de que o entendimento acerca da natureza é conseqüência do conhecimento que temos de seus mecanismos físicos. O realismo pressupõe certa “dupla objetividade”, no sentido de que, a Realidade não só “de fato” existe, como pode ser dissecada e compreendida pelo homem. Notamos que esse é o cerne de toda filosofia aristotélica. No quadro “A escola de Atenas”, de Rafael, enquanto Platão é retratado apontando para o céu, como que a dizer que a verdade só pode ser alcançada pelo puro pensamento, Aristóteles é pintado apontando para a terra, simbolizando que para ele, se quiséssemos conhecer a verdade, deveríamos examinar a natureza. Enquanto isso, o antirrealismo, questiona se há concordância precisa entre a natureza e os modelos científicos que elaboramos para representá-la.
Para Karl Popper, uma teoria científica é um modelo matemático que descreve nosso entendimento e nossas observações de um modo lógico, visando explicar uma vasta gama de fenômenos naturais por meio de poucos postulados, rigorosos e “simples”, confirmados por experimentação. Entretanto, nada garante que o nosso conhecimento científico represente a realidade de um modo fiel e preciso, e, portanto, nada garante que, uma teoria que em uma época é considerada verdadeira, na vá ser reavaliada ou até abandonada futuramente. Ora, a história da ciência nos demonstra isso. Não sabemos o quanto estas três visões estão de fato separadas, ou, se, na prática científica, elas não se misturam e se intercalam. Mas o importante é ressaltar que tais visões filosóficas são arcabouços paradigmáticos da ciência.
Metodologicamente, podemos salientar a formação da Ciência e de seu método através da Filosofia. Richard Feynman, em Física em seis Lições nos lembra de que todas as ciências se originaram do que era chamado de Filosofia Natural. Desde séculos atrás, a importância da experimentação já havia sido destacada por filósofos como Roger Bacon, entre outros empiristas. Contudo, foi com Galileu que a união entre teoria e experiência tornou-se uma prática metodológica definidora do empreendimento científico. Costuma-se dizer, portanto que o nascimento do método científico em nada se deve à filosofia, mas isto se trata de um equívoco. Ora, Galileu era um “filósofo natural” referia-se a si mesmo desta forma, bem como era chamado assim por todos. O mesmo podemos dizer de Newton, e de qualquer outro homem de ciência daquela época. Portanto, a união entre teoria e experiência faz parte do empreendimento filosófico de Galileu, representando seu pensamento. O método científico, enfim, não simplesmente “surgiu”, ele foi “pensado”.
A filosofia de Descartes também é marcante para o estabelecimento da ciência moderna. Um dos princípios metodológicos científicos propostos por ele, consistia em fragmentar ao máximo nosso objeto de pesquisa, e analisar sistemática e rigorosamente, em separado, cada pequena parte que o compõe, a fim de compreender a fundo, com exatidão, todos os detalhes daquilo que estudamos. Não é difícil relacionar o caráter científico, e suas especializações cada vez mais rigorosas, com esse postulado metodológico difundido pela filosofia de Descartes.
Já discorremos brevemente sobre os aspectos filosóficos relativos aos paradigmas e aos métodos científicos, agora é imprescindível que o façamos com relação a importantes conceitos presentes em toda a história da ciência. Apontaremos, em primeiro lugar, a origem do conceito de átomo. A realidade seria feita de matéria e a matéria de átomos, partículas microscópicas elementares. Esta grande idéia nasceu do sistema filosófico atomista de Leucipus e Demócrito, embora haja fontes que afirmem que bem antes dos gregos, os sábios indianos já difundiam esta filosofia.
Outra idéia filosófica importante deve-se à Platão. Na sua obra, “Timeu”, ele apresenta a idéia de que a natureza poderia ser explicada em termos matemáticos, pois emergiria de uma profunda simetria. Neste caso, “elementares” não são as partículas, mas os conceitos matemáticos abstratos que configuram a realidade, dos quais emergem a natureza.
Vemos o conceito de simetria em Parmênides, e o de “quebra de simetria” como fonte do movimento e das diferenças, e, portanto da realidade, em Heráclito.
Em toda filosofia grega, e ciência moderna, vemos claramente o ideal de compreender a variedade por meio da unidade, a diversidade da natureza por meio de poucos princípios coerentes. Heráclito, por exemplo, dedicou-se em explicar que todas as coisas eram feitas de uma mesma substância, o fogo.
Outra idéia filosófica igualmente importante, tanto do ponto de vista conceitual, quanto metodológico, é o conceito de “simplicidade”. Esta idéia está presente na “navalha de Occan”, regra que afirma que, entre diversas teorias em competição, que explicam os mesmos fenômenos com bom grau de acerto, devemos preferir as mais simples, pois uma elevada complexidade teórica pode atrapalhar a coerência interna do sistema. Na verdade, a natureza, se pode obter o mesmo resultado, através de um processo simples, sendo “econômica”, porque haveria de fazê-lo por meio de caminhos complexos? Esse conceito assim formulado remonta a Willian de Ockam, filósofo inglês nascido em 1300.
Enfim, quando fazemos uma pergunta do tipo: “Porque não podemos conhecer o momentum e a posição de um elétron, ao mesmo tempo?”, ou, “Como se explica a abundância do elemento hélio?” queremos obter o entendimento de determinadas questões técnicas e aplicáveis. Mas, além disto, perguntamos estas coisas porque desejamos entender o mundo, compreender a natureza, e porque acreditamos que o mundo possui explicação, possui ordem. Ou seja, fazemos tais perguntas por partirmos do pressuposto de que há respostas. Os ideais filosóficos de objetividade, causalidade, coerência interna, simplicidade, são bases sobre as quais o intelecto empreende. Enfim, quando fazemos aquelas perguntas específicas de física, ou química, ou de qualquer outra ciência, estamos perguntando, na verdade, sobre “O que é a Realidade? Quais são suas leis? Porque as coisas são como são? Como elas funcionam?A que mecanismos obedecem?”. É por isso que tais questões científicas são questões filosóficas.
Filosofia e Ciência, além de serem atividades intelectuais profundamente interligadas, pelos paradigmas, métodos e conceitos, estão intimamente entrelaçadas em um nível muito mais profundo, porque ambas são conseqüências e ferramentas de um traço fundamental do espírito humano: a busca por compreender o universo, e a si mesmo. Foi essa disposição nutrida por nossa espécie desde os primórdios que nos fez desenvolver a Filosofia. O espírito filosófico, conjugando razão (racionalistas) e experiência (empiristas) deu origem à Ciência. Muito mais do que fomentadora de técnicas e tecnologias com fins de utilidade prática, a ciência é um empreendimento de caráter filosófico, pois visa obter o conhecimento acerca da realidade, a fim de respondermos grandes questões; “Como surgiu o Universo e do que ele é feito? Quais as naturezas do Espaço e do Tempo? Quem somos nós?”.
A Mecânica Quântica, por exemplo, revoluciona não só o quadro do conhecimento técnico da natureza em certa escala espacial, mas também nossa própria visão de mundo, modificando os conceitos de “Realidade”, “Objetividade”, entre outros, alterando o status e os limites da própria ciência, promovendo, portanto, marcantes implicações em matéria de Filosofia. A complementaridade onda-partícula, a importância da participação do observador no resultado dos experimentos quânticos, e o princípio de incerteza, promovem importantes reavaliações no modo como compreendemos a natureza (ontologia) fazendo-nos ultrapassar tanto o ideal clássico de objetividade, em um sentido forte, quanto o de determinismo. A incerteza quântica, como salienta Stephen Hawking em “Uma Nova Historia do Tempo”, impõe limites ao próprio conhecimento, e “ao que” e “a quanto podemos conhecer” (epistemologia), alterando um importante paradigma científico: se durante séculos, acreditamos que poderíamos obter um conhecimento absolutamente preciso e objetivo do mundo, agora constatamos que nosso conhecimento é sempre limitado, porque podemos entender a natureza somente em termos de indeterminação e probabilidades.
A Filosofia da Ciência, portanto, se debruça em analisar filosoficamente a ciência, mas não consiste, em absoluto, em apenas uma análise filosófica externa ao empreendimento científico, como se fosse um tipo de reflexão que os filósofos, de fora, como observadores, fazem de um objeto externo, chamado “ciência”. O que podemos ver, é que a própria ciência, de dentro para fora, está repleta de questões filosóficas, desde suas entranhas até seus aspectos exteriores. Deste modo, a Filosofia da Ciência é também a própria Ciência refletindo sobre si mesma, sobre a validade de seus conceitos, a realidade de suas representações, seus alicerces paradigmáticos e metodológicos, bem como sobre as influências e conseqüências culturais, ambientais e sociais de seu empreendimento.
Referências:
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