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A (Meta)Crítica da Razão Antropofágica

Um crítico é um leitor que rumina. Schlegel

Roy Sollon Santos Costa Brancatti Borges - Licenciado em Filosofia Unisantos

É sempre importante destacar a relevância da nossa alquimia tropical de ímpeto digestivo que é a Antropofagia, sobretudo na proximidade do nonagésimo aniversário de seu Manifesto. A ousadia e a radicalidade poético-crítica, da qual Oswald de Andrade se serve com tanta mestria, serve-nos de exemplo e de horizonte no que se refere à conquista de uma Filosofia Brasileira.

O Manifesto Antropófago apresenta em suas linhas uma lúcida síntese de ideias e de ideais, amadurecidos durante uma etapa heroica do Modernismo brasileiro. Tendo por fontes explícitas de inspiração: Karl Marx, por tudo que traz de revolucionário – social e politicamente – e por seu próprio Manifesto (Manifesto Comunista); Freud e André Breton, pela retomada do elemento primitivo no homem civilizado; Montaigne e Rousseau, pela revisão do conceito de “bárbaro” e de “primitivo”. A Antropofagia, tal como Oswald delineia no Manifesto, evoca uma postura crítica e, sobretudo, filosófica do brasileiro em relação a sua própria brasilidade. “Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”!

Oswald entrelaça suas preocupações estéticas com políticas, resultando assim numa perspectiva vanguardista. Sua linguagem, fortemente munida de metáforas, ironia e humor, esconde uma espécie de antropologia poético-filosófica do brasileiro. Como crítico, Oswald transforma a imagem do “bom selvagem” rousseauniano (tão louvada no Romantismo nativista brasileiro, como em Gonçalves Dias e José de Alencar) num despudorado “mau selvagem” devorador de brancos, de europeus. Há aí a peculiar concepção oswaldiana de brasileiro: como aquele que, enquanto antropófago, é capaz de romper com a tradicional relação colonizador/colonizado, pois a Antropofagia oswaldiana não envolve nenhuma forma de submissão ou conformismo, nenhuma “catequese”, mas uma transculturação. “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” – disse Oswald. A brasilidade – na perspectiva antropófaga – é bela, bárbara e neológica; o canibalismo, no devorar de seu adversário, é um gesto crítico.

 O Canibal enquanto Polemista

A polêmica genuína põe um livro diante de si tão amorosamente quanto um canibal prepara para si um bebê. (Walter Benjamin)

Como escreveu Walter Benjamin, “o crítico é estrategista na batalha da literatura”, e disso Oswald sabia perfeitamente. O gesto crítico antropofágico supõe uma lucidez estratégica: a tomada de consciência da importância de (re)afirmação dos valores nacionais numa linguagem moderna e à altura das técnicas revolucionárias das vanguardas europeias, sem que nos deixemos intimidar por nossas supostas “limitações técnicas” e nosso “subdesenvolvimento” e, principalmente, sem submissão a fórmulas exteriores. Esse mesmo “subdesenvolvimento” deve servir de ponto de partida crítico para a estética e para a política: “a contribuição milionária de todos os erros”. Oswald propõe, portanto, uma renovação radical no campo (de batalha) artístico e intelectual brasileiro. Por isso, como explica Haroldo de Campos, trata-se de “uma transculturação; melhor ainda, uma 'transvaloração’: uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzsche) capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução. Todo passado que nos é 'outro’ merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado. Com esta especificação elucidativa: o canibal era um 'polemista’ (do grego pólemos = luta, combate), mas também um 'antologista’: só devorava os inimigos que considerava bravos, para deles tirar proteína e tutano para o robustecimento e a renovação de suas próprias forças naturais” (CAMPOS, 2006. p. 234 -5)

O Canibal enquanto Antologista

O seu amor é canibal

Comeu meu coração

Mas agora eu tô feliz

(Ivete Sangalo)

Com a absorção do inimigo sacro e com a vitória sobre os males catequistas trazidos nas caravelas, o antropófago genuíno – que critica e que devora – dá-se a si mesmo o supremo presente: um passado a posteriori, a descoberta de Pindorama como país do futuro. O passado que a priori nos é “outro”, devorado, digerido e incorporado, torna-se nosso, nos apoderamos dele, como memórias inventadas, como uma família que nos demos, como nossa história. Antes mesmo dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil já tinha descoberto a felicidade!

Simultaneamente como reverência e transgressão, o antropófago genuíno nutre-se de seu adversário por reconhecer-lhe a força. O “mau selvagem” oswaldiano é regido por um amor canibal, sua fome transmuta cultura: cria a partir do criado, encaixa, soma e incorpora. Iconoclasta, o antropófago rumina seu adversário, derruba os ídolos e os transforma em heróis. Ele os acumula, justapõe e ultrapassa. Desata o imperialismo e derruba o Patriarcado. Antropofagia é a vitória dos vencidos, é a História recontada pela ótica dos canibais.

Na posição dúbia de extrema recusa e fidelidade a seu tempo, Oswald não prega um retorno à oca, ou a negação completa do que a colonização nos legou, mas uma síntese entre o moderno e o arcaico, a dissolução dos limites entre o bárbaro e o civilizado e, deste modo, apontar para a (re)criação do destino político, histórico, social, cultural e, sobretudo, filosófico da realidade brasileira sob a forma de invenção poética. Dizer que somos “subdesenvolvidos” é arbitrariedade, somos bárbaros e neológicos, transculturamos/transcriamos. Sem conformismo, sem submissão. A alegria é a prova dos nove diante do pão seco de cada dia, da tropical melancolia, do “subdesenvolvimento”. Transformar o tabu em totem. “Tupi, or not tupi”?

Referências Bibliográficas


BENJAMIN, Walter. A Técnica do Crítico em Treze Teses. In: Rua de Mão Única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas)

CAMPOS, Haroldo. Da Razão Antropofágica: Diálogo e Diferença na Cultura Brasileira. In: Metalinguagem e outras Metas. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

SCHLEGEL, Friedrich. O Dialeto dos Fragmentos. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997.

SCHWARTZ, Jorge. Oswald de Andrade. 2.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Literatura Comentada)