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Por pedagógicas de absurdo

Hugo Allan Matos
Mestre em Educação - UMESP

Faço esta reflexão desde uma perspectiva filosófica, brasileira, latino­-americana, dialogando com a “ética da alteridade” de Emmanuel Lévinas. Dizer isso é importante porque explicita o ponto de partida. Não é preciso dizer que é uma possibilidade dentre infinitas, baseada em minhas experiências, em minha sensibilidade. Sem abandonara pretensão filosófica. O objetivo aqui éo de contribuir comos debates sobre a educação. Um convite.


Diante da atual crise estrutural da cultura greco-ocidental, pouco se afirmaa necessidade de repensar categorias e conceitos que permeiam as relações pedagógicas. No tempo da pós-verdade,há também um senso comum na academia, queacabou por naturalizar significações muito específicas de autores e perspectivas específicas, como se universais fossem. Deixamos de pensar o que é a educação, o que é o mundo, o que é a existência e passamos a repetir, traduzir e comentaro pensamento eurocêntrico como se isso fosse produzir conhecimento.
Nessa perspectiva não é proposto negar toda a tradição greco-ocidental, mas empoderar-se dela e dialogando criticamente com ela, afirmar nossos dizeres, nossas palavras, nossos conceitos e categorias filosóficas.
Ou seja, precisamos resgatar a dimensão ética de nossa vivência, de forma existencial, reconhecendo­-a como fundante de nossa experiência enquanto seres humanos. Aqui, nesta breve reflexão, o que nos importa é apenas parte dessa existência, que chamamos de relações de construção de conhecimento. Todas as relações nas quais aprendemos-ensinamos, nas quais construímos conhecimento. É a educação, a pedagógica. Aqui evoco um conceito de educação que se afirma como o conjunto de todas as relações que envolvem construção de conhecimento. Este conceito tem algumas implicações que preciso sinalizar.
Entender a educação como o conjunto das relações de construção de conhecimento afirma já uma opção ética e dialógica. É o mesmo que dizer que o fundamento da educação está nas relações que constroem conhecimento.
Infelizmente grande parte dos discursos sobre a educação nesta segunda década do século XXI d.c. estão focadas nas metodologias, nas tecnologias, nas ideologias, no lucro...em tudo, menos nas relações de construção de conhecimento,o que é o fundamento primeiro de qualquer processo educativo possível. Qualquer relação pressupõe que todas as partes envolvidas sejam respeitadas em sua alteridadee tenham a possibilidade real de participação dialógica, de falar/manifestar-se e de ser ouvida e considerada. E para que sejamos respeitados em nossa alteridade é essencial que sejamos reconhecidos e reconhecidas como álteros , ou seja, que cada um, cadauma de nós é uma pessoa infinitamente singular e que portanto, não há nenhuma compreensão possível, não há possibilidade sequer de “colocar­-se no lugar do outro” ou empatia. A própria empatia aqui, bem como qualquer tentativa de compreensão, as expectativas, o ciúme... constituem-­se como relações de domínio. O outro, a outra é um completo mistério, absurdo, qual não cabe em teorias, ontologias, minhas capacidades de compreensão. Todas estas tentativas de grande parte do pensamento greco-ocidental estão baseadas no que Aristóteles sintetiza em três princípios: princípio de identidade, princípio de não contradição e o terceiro excluído. Podemos explicitá-­los assim: o ser é o que é e não pode ser o que não é. Graficamente costumou ser representado na filosofia pela igualdade: “A=A”. Se A é igual a A, ele não pode ser B. Os atenienses logo nos primeiros séculos de sua constituição cultural estabeleceram sua identidade em torno do conceito de logos. Este conceito é a expressão da possibilidade da compreensão do SER das coisas, das essências. Mas, só é capaz do Logos aquele que fala bem o grego. E portanto, a racionalidade discursiva grega é um critério para definir o que é o ser humano civilizado. Aquele que não fala (e pensa) bem em grego é o bárbaro, aquele que balbucia. A cultura Romana as Cristandades Medievais, e a Cultura Moderna estabeleceram seus seres. A nossa cultura, moderna, ocidental, por exemplo, já estabeleceu alguns seres como parâmetro civilizacional. Poderíamos aqui citaro “ego cogito”como a criação do sujeito moderno, o sujeito que a partir de sua racionalidade, funda sua existência. Ethos, ou seja, modos de ser que serviram como parâmetro para estabelecer o que é o ser e julgar o não ser. A ânsia de compreensão do Ser, de alguma forma é um dos grandes motores de nossa civilização greco-ocidental. E talvez esse seja um dos grandes motivos da violência estrutural dela.
Mas, se o outro, a outra são mistérios inalcançáveis à minha lógica, como é possível estabelecer relações? Estas relações podem ser de domínio ou de respeito às alteridades. Para relações pedagógicas, de construção de conhecimento, que respeitam às alteridades, pensei, a partir das diversas teorias e sobretudo da prática, em um tripé.
O primeiro pé é a noção antropológica. Quem é o ser humano? Essa pergunta é essencial à construção do conhecimento, pois quando não a fazemos e não tomamos um conceito antropológico, carregamos inconscientemente uma concepção antropológica e ela determina nossas relações como seres humanos. A depender da concepção que carregamosde ser humano, as relações álteras podem ficar impossibilitadas. Por exemplo, se creio que o ser humano é mau por natureza, minha relação com as pessoas será mediada por essa concepção de uma forma muito diferente que se creio que o ser humano é bom por natureza. Não é a intenção aqui refletir sobre as especificidades e complexidades de cada uma dessas concepções. Mas a que adotamos e já está escrita aqui é a concepção de alteridade, que acredita portanto que o ser humano não é nada por natureza, nos construímos mediante nossas relações com as pessoas e com a natureza, nunca nos formando completamente, sempre estando implicados nessas relações que vão nos constituindo, formando nossa subjetividade. Somos limitados por um passado, no presente, em vista de projetos futuros. E vamos nos constituindo de forma infinitamente diferente de qualquer outro ser humano.
O desenvolvimento do sistema límbico nos garante experiências singulares que envolvem os afetos, a sensibilidade, as memórias, o sistema valorativo e a racionalidade. Perceba aqui que a racionalidade (lógico matemática) é apenas uma faculdade de uma complexidade tão grande que é o processo de construção de conhecimento. O sistema valorativo por exemplo, tem relação direta com o sistema de proteção biológica (prazer/dor) e com as pulsões psicológicas (morte/vida). O que quero dizer é que cada ser humano é infinitamente diferente de outro, biologicamente falando. Não estamos aqui falando de uma construção racionalizada, apenas. Então, não é mais possível afirmarmos identidades fixas, conceitos e categorias ontológicas que visam a compreensão do ser humano. Temos aqui grande parte da história da filosofia greco-ocidental até o séc. XX superada. A pretensão de conhecimento ontológico do outro, é na verdade, a busca pelo domínio do outro. Grande parte das teorias pedagógicas, psicanalíticas, filosóficas… não fazem mais sentido frente a esta concepção antropológica de alteridade.
A linguagem é nosso segundo pé do tripé. Toda relação de construção de conhecimento pressupõe uma concepção antropológica que a permita e uma linguagem comum. Aqui, imediatamente também há um grande problema nas relações pedagógicas: o problema geracional. Se formos tratar das relações pedagógicas na escola, habitualmente a relação de construção de conhecimento se dá na relação entre professores e alunos.Nas concepções tradicionais de educação:o Professor: aquele que professa a verdade,aluno: o sem luz, que deve receber a verdade pela aula (ato de dar luz).
Perceba que a linguagem habitual para tratar de educação, a iluminista, traz umaconcepção antropológica consigo, qual se não paramos para refletir criticamente, simplesmente assumimos e repetimos em nossa prática, de forma acrítica. Alinguagem portanto, deve ser algo estrategicamente em comum. A educadora, o educadoradequam sua linguagem ao educando, educanda. Essa adequação deve ter como parâmetro justamente a relação ética, de respeito às alteridades. Adequação necessária para diminuir a assimetria, desigualdades existentes nesta relação, empoderando os educandos e educandas da fala. A constituição de um verdadeiro diálogo, onde o educador, a educadora, colocam­-se na condição de aprendiz, como anseia Paulo Freire e em vez de transmitirem conteúdos, interpelam aos educandos e educandas a uma relação de respeito, na qual possam dizer-­lhe um pouco de si a fim que o mesmo, na sensibilidade, criatividade e imaginação construa as intermediações necessárias de conteúdo para a relação de construção de conhecimento.
O terceiro pé deste tripé fundante da relação de construção de conhecimento em perspectiva de alteridade, decorrente da concepção antropológica e da adequação de linguagem anteriormente expostas é a significação e sentido dessa relação e de seu conteúdo. As intenções do educador, da educadora, devem estar transparentes desde o início. E não pode ser outra que dar-­se em serviço aos educandos e educandas. Esta é outra questão que parece óbvia, mas faz toda a diferença. Se a pessoa que está ali na condição de educador, educadora, o estiver sem querer estar, sem assumir para si a missão de prestar um serviço a seu país, àquelas crianças, jovens, adultos… A relação de respeito à alteridade ficará muito difícil de ocorrer, se ocorrer. Na atual conjuntura de nosso sistema de educação colocar-­se na condição de educador/ educadora é assumir uma missão.
A questão da “significação e sentido”traz consigo toda uma carga valorativa como pressuposto para a relação. Além disso, a escolha de conteúdo e de como trabalhar o conteúdo é muito importante para esta relação. O conteúdo deve ser de interesse do educando, da educanda. Estes devem valorizar, dar valor ao conteúdo base da relação de construção de conhecimento. Como sabemos, com a descoberta do sistema límbico, aprendemos apenas as coisas que valorizamos, as quais temos interesse. Aqui há um trunfo! A grande dificuldade para o educador, educadora talvez seja a de adequação de linguagem, mas também a de garantir a partir dos referenciais teóricos, atender a objetivos curriculares e trazer conteúdos que despertem o interesse. A Neurociência, a “Educacional Emocional”, “soft Skills”, inovação tecnológica na educação, são importantes, mas sem passarem pelo crivo da criticidade, sem uma concepção antropológica, adequação da linguagem, significação e sentido, soam como uma racionalidade ornamental, qual se prende a ornamentos, mas não trata do essencial: a relação da construção de conhecimento. Não há ensino ou aprendizagem se não houver a relação. E para haver a relação, há pressupostos que precisam ser garantidos. Aqui não serão objetos de reflexão, mas para citar dois que concebo como essenciais: valorização financeira da educadora/educadore um número aceitável de pessoas no mesmo espaço para a mesma relação. A partir de diversas teorias, chegamos a cerca de 30, constando nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação, que é a legislação que normatiza a educação em nosso país.
Só aqui, para terminar esta breve reflexão,enfatizoao conceito chave do título: Absurdo. É tudo aquilo que é destituído de sentido, de racionalidade. Essa palavra data mais ou menos do séc. XVII absurdus o que é desagradável ao ouvido. O absurdo, além de não entrar em nossa lógica racional, além de não ser compreensível racionalmente, nos incomoda, é desagradável à racionalidade, nos provoca, nos interpela, portanto. O rosto do outro, se revela como absurdo. Pois não é fácil de dominá-­lo e o conter em relações de domínio. É impossível compreendê-lo. Frente a este outro há três possibilidades de reação: 1. Tentar dominá-lo, mas sem sucesso, pois não é passível de domínio. Então, quando estamos em relações de domínio, tentamos nos convencer, nos enganar de que aquilo é legítimo, mas como pode ser legítimo o domínio do outro? A totalização em si mesma está por trás desta opção. 2. Ignorar o rosto do outro, que nos interpela. A provocação do rosto do outro é aquilo que nos faz mais humanos, quando respondemos a ela a partir de uma relação de respeito à alteridade. E o que nos leva a responder a esta provocação? O desejo do invisível que se alimenta, mas nunca se sacia, dirá Lévinas. Esta opção de ignorar à alteridade é também uma opção de tentar bastar-­se em si mesmo, de totalizar-­se, processo esse que nos desumaniza e potencializa em nós e na sociedade uma cultura da indiferença e do aumento da violência. 3. Respeitar a alteridade. Esta é a única opção ética nesta perspectiva, que responde à pró­-vocação do rosto do outro, que nos interpela à vida, à responsabilização e serviço pelo outro e portanto, a uma cultura de solidariedade. Acredito, portanto, que é só pelo respeito às alteridades, nos jogando em relações de absurdo é que conseguiremos conquistar relações mais humanase portanto, nos humanizarmos.
Nas relações de construção de conhecimento isso tem uma importância notável, sobretudo se sentirmos a vida dessa juventude, que grita e nos incomoda, por esperança, por respostas, por expectativas de uma vida melhor e não temos respostas. A relação de construção de conhecimento é o que qualifica o processo de construção de conhecimento, portanto. Não tivemos, ainda no Brasil, um projeto político de educação que esteja centrado nisso. Pensar assim, é repensar todo o fenômeno educativo é repensar todo o sistema de ensino, mas também todas as nossas relações sociais de construção de conhecimento que vão muito além do sistema educacional oficial. Desde o modelo arquitetônico das instituições voltadas à construção do conhecimento, até a aceitação de que estas relações permeiam nossa vida cotidiana e as instituições de ensino, devem fazer parte dela, ou seja, as instituições de ensino devem ser instituições importantes e íntimas à sua comunidade, fazer parte de seu cotidiano, ser espaço de encontro e de formação comunitária, para muito além da educação formal. As comunidades que tenham como característica principal a construção de conhecimento, precisam ser espaço do Falar e do Ouvir ao outro que nos interpela, precisa caminhar e valorizar à palavra, sem entendê­-la com a razão. Mesmo sabendo que nunca entenderemos completamente, caminhar com o outro é fazer­-nos humanos, é fazer-nos comunidade.É sair da racionalização individualista moderna e jogar-nos no absurdo e construir o novo. Mas para isso, precisamos ter sensibilidade, coragem e amor. O quanto realmente estamos dispostos?