O Brasil como efeito descivilizador:
Educação, Ciências Humanas e Filosofia sob ataque
Anderson Alves Esteves
Doutor e Mestre em Filosofia - PUCSP
Antonio Valverde
Doutor em Educação - Filosofia e História da Educação - UNICAMP
“nuvem de mosquitos
o ar se move
vento nenhum”
(Alice Ruiz S. Desorientais)
“A gente está sendo atacado”, disse a personagem Lunga, em Bacurau; a sentença distópica, vinda de algum momento do futuro, pode ser proferida, no presente, por profissionais da educação e por estudantes no Brasil, aviltados pelo desmonte do Estado de bem-estar social que jamais ultrapassou o estágio de incipiência. Neutralizadas para deixarem de contribuir com a aceleração do “processo civilizador”1 e não auxiliarem a estatuir a majoração progressiva do acesso, formal e substancial, àquilo que a humanidade edifica e edificou, as instituições de ensino, sob estrangulamento financeiro e perseguições doutrinárias, foram atacadas para se metamorfosearem em agências da mesma barbárie que ocorrem em outros âmbitos, tais como o ambiental, o ético, étnico, o de gênero, o econômico... O país literalmente queima, está manchado de óleo, soterrado em barragens rompidas, afronta populações autóctones e os povos da floresta, eleva níveis de várias formas de desigualdade – e resta à educação, de acordo com entendimento do governo Jair Bolsonaro, somar esforços na força-tarefa descivilizadora. Antes de tudo, as instituições de ensino devem se calar.
Uma parte da miríade de ataques ultraja e contempla a educação de modo geral e, outra, mais específica, foi calibrada para acertar a área de Humanidades e de Filosofia.
Na primeira, além das barbáries efetivadas sob o governo Michel Temer – Emenda Constitucional 95/2017, que congelou o investimento no serviço público por vinte anos; reforma do Ensino Médio (Lei 11.415/17) que divisou uma escola para pobres e outra para ricos, que o “flexibilizou” de maneira a retirar o investimento público nesta etapa da Educação Básica e possibilitar que os recursos enviados sejam canalizados para empresas e, assim, colonizar a educação pública pela forma-mercadoria2 –, a paranoia macartista do governo e de seu séquito incentiva a perseguição e a censura a docentes; arvora o irracionalismo; propaga e insiste em fazer tramitar quantas vezes forem necessárias o projeto “Escola sem partido” pelos legislativos federal, estaduais e municipais; condenou atividades acadêmicas de universidades de renome nacional e internacional como “balbúrdia”; “contingenciou” verbas discricionárias de universidades e de institutos federais; congelou bolsas de pesquisa; ameaçou eliminar os programas de bolsas de estudo no ensino privado; promoveu insegurança orçamentária nas instituições públicas; estrangulou financeiramente a CAPES e o CNPq; apresentou o projeto “Future-se” para viabilizar a domesticação da educação e da universidade pública pela forma-mercadoria; esforçou-se em conduzir um projeto de lei orçamentária que diminui as verbas das agências de fomento para 2020; interviu em escolhas de reitores de universidades federais; vetou o projeto de lei que previa profissionais de Psicologia e de Serviço Social em escolas públicas; priorizou o projeto de implantação de escolas cívico-militares nos estados, considerado pelos governadores estaduais como elitista e caro.
De maneira mais específica, as Ciências Humanas e a Filosofia foram atacadas por Jair Bolsonaro e pelo ministro A. Weintraub. Via Twitter e lives (!), as autoridades prometeram subtrair os investimentos públicos nos cursos da área e remetê-los a outros – flagrante desrespeito à Constituição de 1988 e à LDB de 1996, garantidoras da autonomia universitária. Para o governo, os cursos de Humanidades e,
sobremaneira, os de Filosofia e de Sociologia, têm pouca relevância e formam apenas militantes políticos; argumento facilmente desmentido pelos dados da Web of Science (caso se deseje limitar a discussão à métrica puramente quantitativa e rasteira): foram justamente os cursos de Ciências Humanas e Filosofia que colocaram o Brasil entre os 15 países que mais produziram ciência no mundo entre 2008 e 2017. Em verdade, contudo, a Educação, as Ciências Humanas e a Filosofia são perseguidas em virtude da “falsa projeção”3 governamental em eleger um grupo a ser estigmatizado, eleito como outgroup e inimigo, atacado para nele canalizar suas pulsões reprimidas, além de focar a altercação aos estudantes e profissionais da educação que, historicamente, têm se oposto ao status quo e às múltiplas faces do casamento entre liberalismo e autoritarismo à medida que mostraram-se e mostram-se abertos ao diálogo, à diversidade, ao pluralismo, e que desagrilhoam o pensamento do rame-rame, tanto hodierno como canônico, para elaborarem novas epistemologias. Em lugar da pacificação, o Executivo Federal e o MEC promovem a guerra.
A barbárie já está registrada em dados. Henry Burnett4 analisou os números divulgados pela Folha de São Paulo, em outubro do corrente ano, e estabeleceu nexos entre os ataques governamentais às Ciências Sociais e à Filosofia e a queda do número de ingressantes nestes dois cursos de graduação: na comparação entre 2014 e 2019, as matrículas caíram 47% em Ciências Sociais e 20% em Filosofia. À guisa de depoimento, Carla C. Kawanami5 pesquisou significações construídas por formandos de Ensino Médio, em um campus do IFSP, e notou que os ataques à educação e às áreas de Ciências Humanas e Filosofia já foram interiorizados pelos estudantes, que se mostram inclinados a optarem por outras carreiras que não as atacadas pelo governo: “A minha vontade é ser pesquisadora e viver de pesquisa e dando aula. Mas pela condição que o Brasil tá, eu, tipo, caí na realidade para perceber que talvez eu tenha que trabalhar fora disso”, disse uma estudante entrevistada.
Opor civilização e barbárie é um procedimento ideológico (em sentido marxiano) à medida que veda a percepção da dimensão irracional da racionalidade positivada, das contradições existentes na realidade, que justifica e veicula o etnocentrismo, pois inclina a pensar a história de acordo com um trajeto linear e teleológico da barbárie à civilização. No Brasil, a atual condução corrosiva dispensada à educação denota barbárie sob os auspícios de uma República, de uma Constituição, de uma democracia representativa – pensar de maneira binária, portanto, mistifica a questão.
Norbert Elias considerou que o processo civilizador, ao mesmo tempo em que socializou as pessoas de maneira a submeterem suas pulsões primárias à consciência racionalizadora, metamorfoseando a coerção externa em autocoação, civilizou-as ao circunscrever a violência à latência. Mas o Autor – e, antes dele, Vico advertira que nações civis poderiam regredir à barbárie – não se furtou em contemplar o apanágio do “efeito descivilizador”6 de muitos fenômenos observáveis dentro do mesmo processo arvorado a longo prazo na história do Ocidente e que mostram a possibilidade de surtos de violência e regressões no caminho de pacificação do mundo social.
Dentre os eventos históricos, há estados nacionais a monopolizarem o uso legítimo da força, novas formas de administração e supervisão dos territórios, burocracia profissionalizada, parlamentarização como estratégia de resolução de conflitos, aprofundamento da divisão do trabalho e das funções, crescimento da interdependência, monetarização da economia, urbanização – o nexo entre sociogênese e psicogênese contribui com o entendimento da suspensão do gládio individual, da civilização dos costumes, da moderação, da compulsão ao espírito de previsão e ao autocontrole, da formação de novos hábitos à mesa e de quarto, de assoar e escarrar, de relacionamentos amorosos, de agressividade, de regras esportivas, da relação das pessoas com as crianças e com os idosos, de contagem do tempo. Empreendeu-se um “anel concatenado” entre controle social, controle da natureza e autocontrole que diminuiu o recurso à violência (exterior) e o circunscreveu ao fundo da cena social.
Em contrapartida, é descivilizador tudo que dissuade o autocontrole e inclina às explosões violentas: Elias observou estes surtos de regressão e de barbárie na insistente tradição alemã dos duelos, no nazismo, nas organizações extraparlamentares que adotavam o terrorismo como ação política.
E, no Brasil, podemos pensar, de acordo com a contribuição elisiana, que a educação, ao ser violentada por quem deveria resguardá-la, está tratada em compasso com processos de socialização e individuação a estimularem estratégias beligerantes nas resoluções de conflito e a açularem o efeito descivilizador. Instituições de ensino são inclinadas, ao serem invadidas pela forma-mercadoria, a primarem por uma formação mutilada e mutiladora à medida que se reduzem ao instrumental e veiculam toda a sorte de insuportáveis desigualdades que, há séculos, vincam a sociedade brasileira e perenizam a barbárie. Educação que mimetiza a violência, a propaga, bloqueia a libertação e a encerra como tabu.
- “A gente está sendo atacado”.
Referências bibliográficas
1. ELIAS, N. O processo civilizador vol. I: uma história dos costumes. 2° ed. Trad. de R. Jungmann, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 69.
2. CORTI, A. P. “Política e significantes vazios: uma análise da Reforma do Ensino Médio de 2017”. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982019000100425&lng=pt&nrm=iso&fbclid=IwAR1YgwmdPTT5Z0He8GwCHNfVc9l5ns0WTNjVtpFJFlF5gW1K2QcmKm9Qi3k.
3. HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. “Elementos de antissemitismo: limites do Esclarecimento” In: Dialética do Esclarecimento. Trad. de G. A. de Almeida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 174.
4. BURNETT, H. “Filosofia e Ciências Sociais vs. Direito? In: Coluna Anpof. Disponível em: http://anpof.org/portal/index.php/en/comunidade/coluna-anpof/2339-filosofia-e-ciencias-sociais-vs-direito.
5. KAWANAMI, C. C. Ensino Médio Integrado: um estudo sobre as significações constituídas por estudantes de um campus da rede federal. Dissertação de mestrado em Educação (Psicologia da Educação), São Paulo: PUC/SP, 2019, p. 71.
6. ELIAS, N. Envolvimento e alienação. Trad. de A. de Sá, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 21.
7. _____. A sociedade dos indivíduos. Trad. de V. Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 116.