DA SABEDORIA AO SABER
Jasson da Silva Martins
Doutorando em filosofia – UFBA
Introdução
O que aconteceu com a filosofia ocidental para que ela deixasse de ser uma sabedoria e se tornasse um mero saber? Minha resposta a essa interrogação parte de uma dupla constatação: a primeira é que não estranhamos a relação entre sabedoria e espiritualidade quando lemos textos de filosofia oriental; a segunda é que a filosofia acadêmica ocidental se distanciou da busca pela sabedoria, que a impulsionava em seus primórdios, na Grécia arcaica. A resposta pode ser apresentada a partir de uma reflexão sobre a evolução histórica da filosofia ocidental: ao longo do seu desenvolvimento a filosofia perdeu sua antiga capacidade terapêutica/prática e tornou-se uma teoria.
No ocidente convivemos com uma outra ambiguidade: ao mesmo tempo que “ser filósofo” diz respeito à busca de uma certa serenidade face aos acasos da existência; “ser filósofo” também diz respeito à conquista de um diploma universitário, estranho às origens da própria filosofia. A primeira acepção de “filósofo” inclui a espiritualidade e os seus exercícios, a segunda acepção não. É preciso retornar à antiguidade para compreendermos melhor a dimensão espiritual inaugural da filosofia. O meu objetivo é repensar a filosofia, através de uma reflexão que mostre a passagem da filosofia como meio de atingir a sabedoria à filosofia como saber teórico.
No que segue, gostaria de reconstituir, brevemente, a passagem dos exercícios espirituais próprios da religião arcaica grega à apropriação filosófica destes exercícios pela filosofia nascente. Em seguida expor como ocorreu a apropriação dos exercícios próprios da filosofia antiga pela religião cristã. Minha hipótese, seguindo algumas intuições de Pierre Hadot e Michel Foucault, é que a relação do sujeito com a verdade foi radicalmente modificada na modernidade. A supressão da espiritualidade, contida na filosofia antiga, no processo de reapropriação desta pela religião cristã, culminou na esterilidade da filosofia acadêmica.
Relação entre espiritualidade e filosofia antiga
Antes de adentrar na questão da passagem da filosofia como terapia à filosofia como disciplina teórica, é importante esclarecer o termo “espiritualidade” para evitar possíveis equívocos. A espiritualidade é uma corrente de pensamento caracterizada por conceder um lugar essencial à dimensão espiritual do ser humano. Esta corrente concebe o pneuma como uma realidade autônoma e, por isso mesmo, fonte do agir humano e da consciência moral. Essa é uma caracterização bastante genérica que ajuda compreender, mas ainda não é suficiente. É preciso acrescentar outros elementos.
De início, a espiritualidade se interessa sempre, a um só tempo, pela definição de fins do ser humano e pelos meios de chegar à sua realização; ela implica, conjuntamente, um certo número de práticas destinadas a realizar o sujeito, realizar esta parte essencial dele que é o seu espírito ou a sua alma. Tradicionalmente, o processo de transformação do sujeito culmina sempre com o acesso deste à verdade ou o seu acesso a uma verdade mais originária sobre si mesmo ou sobre o mundo.
A espiritualidade pressupõe, portanto, que a verdade jamais é dada ao sujeito de pleno direito e tal como ele é. O sujeito precisa se modificar para assegurar um acesso ao verdadeiro. A espiritualidade postula, igualmente, que a conquista da verdade ressignifica a vida do sujeito, modificando-o, tornando-o melhor. A verdade não é o fruto de um ato de conhecimento, ela ilumina, ela tranquiliza, ela é sinônimo de felicidade verdadeira. Em termos simples, a espiritualidade é uma busca da verdade que se equipara a busca da filosofia, pois ela é capaz de realizar o sujeito. A dimensão espiritual da filosofia ocidental encontra sua fonte em uma espiritualidade pré-filosófica que propunha práticas de si, exercícios concretos sobre si mesmo para abrir o acesso à verdade a partir de três práticas bem distintas e complementares.
A primeira prática encontramos no rito de purificação que repousava sobre o seguinte postulado: o acesso à verdade exige purificação. Se alguém não se purificasse, estava privado do acesso tradicional à verdade e não poderia praticar sacrifícios, ouvir e compreender os oráculos, se beneficiar da interpretação de um sonho, etc. As diversas práticas de purificação eram ritos necessários e prévios ao contato não somente com os deuses, mas, sobretudo, com aquilo que os deuses poderiam nos dizer. Sem purificação não havia relação com a verdade.
A segunda prática encontramos nas técnicas de concentração da alma. Uma vez que a alma é considerada como um sopro, um pneuma, os exercícios de concentração visavam evitar que esse pneuma se dispersasse e fosse exposto a um perigo interior ou exterior. É preciso concentrar esse pneuma, dar-lhe consistência, solidez e permanência de modo que esta concentração permite ao sujeito resistir, ao longo da vida, às paixões sórdidas. Sócrates afirma, por diversas vezes, nos diálogos platônicos, que cuidar da alma é a principal atividade do filósofo.
A terceira prática própria da espiritualidade encontramos na técnica do retiro. Há um termo específico, anakhorésis, que teve, na sequência, uma fortuna considerável na espiritualidade cristã (com os monges que viviam no deserto, isolados, para viver uma experiência espiritual intensa). A anacorese é uma maneira de se separar ou se abster do mundo e não sentir nenhuma sensação. O objetivo desta técnica/exercício era manter a integridade do corpo e não ser agitado por tudo aquilo que ocorre à sua volta. O sujeito retirado permanece apenas em contato com seus pensamentos.
O pressuposto destas práticas pode assim ser descrito: sem esses exercícios de purificação, de concentração e de retiro, a alma ficaria presa ao tumulto do mundo e a mercê de suas próprias paixões. Sem o progresso nestas técnicas o sujeito não poderia acessar a verdade, pois este acesso lhe era impedido. Todos estes exercícios faziam parte da vida do homem grego, na aurora da filosofia. As tragédias, assim como os diálogos de Platão testemunham, fartamente, a relação do homem grego antigo com estas práticas.
Em relação ao que foi dito no início, a filosofia antiga se apropria dos exercícios espirituais das religiões arcaicas e transmutam o seu objeto, o seu conteúdo e a forma de acesso. Não é o que ocorre com a tradição oriental. Como é sabido, as obras dos mestres Laoazi e Zhuang Zhou estão na base da filosofia-religiosa da China antiga como Daoismo e o Zen. Os analectos, obra atribuída a Confucio, ainda hoje continua influenciando o comportamento e o modo de vida de milhões de chineses. A tradição filosófica grega, assim como assimilou práticas religiosas foi assimilada, na sequência, pela principal religião ocidental e, nesse processo, sofreu mudanças essenciais.
Filosofia antiga e os exercícios espirituais
Qual é, então, a relação da filosofia grega nascente com essa espiritualidade ancestral? É uma questão que pode ser colocada a partir dos trabalhos de Pierre Hadot sobre os exercícios espirituais e a filosofia antiga. Esta noção de “exercício espiritual”, Hadot forjou para destacar as práticas reflexivas e voluntárias através das quais os filósofos procuravam transformar eles mesmos. O pressuposto de Hadot é que a filosofia era, na origem, uma terapia, uma cura da alma que visava a conversão desta alma, ou seja, fazê-la passar de um estado de agitação e dispersão a um estado de tranquilidade e concentração. Através de tais práticas o sujeito chegaria à consciência dele mesmo e gozaria de paz e liberdade interior.
Como ocorreu a apropriação filosófica dessa “espiritualidade antiga”? O gnôthi seauton, inicialmente inscrito no templo de Delfos, é assumido por Sócrates e a partir daí ele convida a cada um a se preocupar com sua alma em vez de se preocupar com o renome ou com as riquezas. A filosofia socrática é um convite a praticar um exercício de atenção que conecta o sujeito à sua alma. Mas a filosofia socrática não é a única expressão da espiritualidade filosófica. Na verdade, todas as escolas antigas apresentam o mesmo diagnóstico socrático: o homem é um ser doente, ele não vive verdadeiramente, ele está alienado por coisas que lhes são estranhas e supérfluas. Estas escolas propõem um mesmo tipo de remédio: exercícios de purificação, de concentração ou de recolhimento. Esta exigência diz respeito à realização do homem antigo, mas também do homem contemporâneo, como afirma Nietzsche:
Uma coisa é necessária. — “Dar estilo” a seu caráter — uma arte grande e rara! É praticada por quem avista tudo o que sua natureza tem de forças e fraquezas e o ajusta a um plano artístico, até que cada uma delas aparece como arte e razão, e também a fraqueza delicia o olhar. Aqui foi acrescentada uma grande massa de segunda natureza, ali foi removido um bocado de primeira natureza: — ambas as vezes com demorado exercício e cotidiano lavor (NIETZSCHE, 2017, § 290).
O convite ao exercício espiritual, como afirma Nietzsche, é um convite perene na tradição ocidental. Falta-nos, diferentemente do que ocorre no oriente, a prática, a integração. Na origem, sabemos, a filosofia antiga não era apenas uma doutrina abstrata ou uma teoria, mas uma direção espiritual, uma contemplação destinada a transformar, a partir do interior, o sujeito (Cf. HADOT, 2014b). O termo “contemplação”, em grego, quer dizer théoria e constitui o objetivo da atividade filosófica. Somente na modernidade que a filosofia vai ser descrita como um conhecimento “teórico”.
Na antiguidade, a contemplação estava ligada a um conhecimento capaz de transformar o sujeito e conduzi-lo à felicidade. Contemplar era sinônimo de filosofar. Como afirma o neoplatônico Porfírio, na obra Sobre a abstinência, contemplação não é o resultado de um acúmulo de raciocínios e conhecimentos aprendidos, mas uma maneira de ser e viver que exige uma transformação da natureza e da própria vida.
[...] contemplação que nos faz feliz não consiste em um acúmulo de raciocínios nem em um conjunto de conhecimentos aprendidos, como se poderia acreditar, nem tampouco baseado na quantidade de raciocínios se consegue seu desenvolvimento, porque, nesse caso, nada impediria que os que abarcam todas as disciplinas fossem felizes. Mas na prática falta muito para que toda disciplina logre sua contemplação; nem sequer o logra o entorno de sua realidade existencial, se com ele não coopera uma transformação da natureza e a própria vida (PORFÍRIO, 1984, I, 9, p. 27).
O acesso à verdade, como exercício de contemplação filosófica, ocorre quando o sujeito a procura com todo o seu ser e de maneira tal que a sua vida é modificada por esta busca. A filosofia antiga se caracteriza, portanto, como objetivo e como realização de uma sabedoria que se encarna em uma existência. O julgamento justo para Sócrates, como ele reivindica, seria um julgamento de suas ações. É um equívoco, portanto, considerarmos os filósofos da antiguidade como seres essencialmente “teóricos”, autores de sistema, fabricantes de conceitos, preocupados em raciocinar e argumentar ou simples fundadores de escolas. Suas obras não eram destinadas a comunicar informações concernentes a um determinado conteúdo. Na realidade,
[...] são frequentemente exercícios espirituais que o próprio autor pratica e faz seu leitor praticar. Elas são destinadas a formar as almas. Têm um valor psicagógico. Toda asserção, portanto, deve ser compreendida na perspectiva do efeito que visa a produzir e não como uma proposição exprimindo adequadamente o pensamento e os sentimentos de um indivíduo (HADOTa, 2014, p. 16).
De fato, à medida que concebemos a filosofia antiga como uma terapia da alma, contendo exercícios para se constituir um gênero de vida particular que se abre sobre a contemplação, quer dizer, sobre um conhecimento da verdade que realiza o sujeito, ela conserva um parentesco com a espiritualidade pré-filosófica da qual ela retoma os exercícios espirituais e as questões fundamentais, ligadas a estes exercícios.
Essa concepção de filosofia, cujo objetivo é uma transformação radical do homem e uma abertura à contemplação e a sabedoria, parece não fazer parte das preocupações da filosofia contemporânea. Aquilo que hoje chamamos filósofo não é mais a figura do sábio, mas uma figura do saber, ou seja, um professor. Como explicar esse processo? Quando o filósofo renunciou a ambição de ser um sábio para ser um intelectual? Tudo isso é possível porque uma formação intelectual e crítica não exige a contemplação da verdade e nem a busca da sabedoria.
Apropriação da espiritualidade filosófica pela religião (Hadot)
Gostaria de apresentar, resumidamente, duas explicações da passagem da filosofia como exercício espiritual à filosofia como exercício meramente intelecual. Incialmente, ocorreu uma reapropriação da filosofia antiga pela religião cristã, que implicou o confisco de sua dimensão espiritual original, pela disciplina monástica (esta é a proposta de Pierre Hadot); em seguida, houve uma redefinição, no início da modernidade, das condições de acesso à verdade que concedeu ao sujeito, apartir de Descartes, o acesso à verdade sem a necessidade de se transformar para obtê-la (esta é a proposta de Foucault).
Para Hadot, na antiguidade pré-cristã, a vida filosófica não concorria com as religiões pagãs, visto que estas eram religiões cívicas e a escolha de um modo de vida implicava a alma inteira. Na Grécia clássica a religião era separada da espiritualidade. A religião cristã, por outro lado, pretende ser uma religião de estado, uma doutrina e um modo de vida particular. Se na Grécia a passagem da espiritualidade à filosofia foi natural, no início do cristianismo a religião entrou em concorrência com a filosofia. É precisamente sobre esse terreno da espiritualidade que se realiza a concorrência e a ruptura entre a filosofia antiga e a religião cristã.
O modo de vida filosófico, na Antiguidade, não entra em concorrência com a religião, porque a religião não é nesse momento um modo de vida que englobe toda a existência e toda a vida interior, como é o caso no cristianismo (HADOT, 2012, p. 381-82).
O platonismo pôde ser reapropriado pelo pensamento cristão na medida em que os Pais da Igreja estavam dispostos a reconhecer, na filosofia platônica, a descoberta de um certo número de verdades conforme aquelas do Evangelho; eles, entretanto, estavam nitidamente menos propensos a lhes reconhecer a capacidade transformadora da filosofia. Platão, diziam, havia emprestado de Moisés e dos profetas tudo aquilo que havia de verdadeiro em seu ensino. Eles também reconheciam que na filosofia grega havia uma visão justa do mundo e dos princípios morais da ação, mas negavam que estes princípios fornecessem os utensílios adequados para chegar a transformar os indivíduos.
Desde a antiguidade, os bispos apologistas, a exemplo de Justino, Orígenes e Agostinho, apresentaram o cristianismo como o único modo de ser, o único estilo de vida que permitia acessar à sabedoria, aquela que os filósofos procuravam e não poderiam, segundo eles, encontrar.
A religião assumiu a tarefa da filosofia: a partir de agora a cura do homem e o acesso à beatitude deveria passar pelas formas da vida cristã. Para estes pensadores a finalidade última da vida humana não poderia ser atingida por meio apenas da natureza e da razão natural; seria preciso uma intervenção da Graça divina. Ao sujeito cabia, portanto, reconhecer a sua finitude e os seus limites face a infinitude e a bondade de Deus. Agora não é mais suficiente conhecer a si mesmo: “Ouso ensinar-te duas coisas, isto é, conhecer-te a ti mesmo e a Deus” (AGOSTINHO, 1998, I, VIII, 15).
O cristianismo, à medida que foi obrigado a delimitar o seu domínio de competência, na estruturação da Teologia, em confronto com a filosofia, se viu desobrigado dos exercícios espirituais. Estes passaram a ser discutidos e praticados no contexto da vida ascética e/ou mística. Os diretores de consciência passaram a ocupar o espaço do filósofo na direção espiritual. Como resultado, a filosofia foi limitada a uma atividade apenas teórica e abstrata, a um discurso racional, um trabalho conceitual destinado a fornecer à Teologia um utensílio nocional lógico e metafísico. Em boa medida, a filosofia universitária é a conclusão desta distinção realizada pelos cristãos: a espiritualidade e os exercícios foram reapropriados pela Igreja, restando a filosofia ser uma atividade apenas teórica.
Se pensarmos nas obras de Erasmo e Petrarca, podemos afirmar que não foram os escolásticos que “des-espiritualizaram” a filosofia, eles são herdeiros de uma filosofia já ressecada e espiritualmente improdutiva. Como é sabido, os exercícios espirituais da filosofia antiga, especialmente aqueles praticados pelos filósofos, formaram a espiritualidade monástica. Essa reapropriação da filosofia grega pelo cristianismo implicou em uma mudança de objetivo: a espiritualidade e seus exercícios estão, agora, situados em um contexto soteriológico, logo, sobrenatural e não mais em função da busca da verdade pelo sujeito. É através da religião, com os exercícios que lhes são próprios, que o indivíduo terá acesso à verdade.
Supressão dos exercícios como necessidade da razão (Foucault)
Disse antes que a filosofia moderna pode ser compreendida como sendo o resultado desse processo de diferenciação entre filosofia e espiritualidade monástica que pretendia ser a única depositária do monopólio da vida e da transformação espiritual dos indivíduos. Podemos compreender o reposicionamento da relação entre sujeito e verdade na obra de Descartes como a conclusão desse processo iniciado pela teologia cristã. Como sublinha Michel Foucault, o fato que o bom senso seja concebido como “a coisa do mundo mais bem distribuída” implica que a filosofia se dispense o trabalho concreto sobre o indivíduo para que ele tenha acesso à verdade, visto que ele possui, naturalmente, aquilo que é necessário para conhecê-la.
Se é verdade que a filosofia grega fundou uma racionalidade na qual nós nos reconhecemos, ela sustentava sempre que um sujeito não podia ter acesso à verdade a menos que realizasse primeiro sobre si certo trabalho que o tornasse suscetível de conhecer a verdade. O elo entre o acesso à verdade e o trabalho de elaboração de si por si é essencial no pensamento antigo [...]. Penso que Descartes rompeu com isso, dizendo: “Para chegar à verdade, basta que eu seja qualquer sujeito capaz de ver o que é evidente”. A evidência substitui a ascese no ponto de junção entre a relação consigo e a relação com os outros, a relação com o mundo. A relação consigo não precisa ser ascética para ser uma relação com a verdade. Basta que a relação consigo me revele a verdade evidente do que eu vejo para apreender definitivamente essa verdade (FOUCAULT, 2014, p. 236).
Colocar a evidência como fonte de conhecimento significa requalificar a prática filosófica: com Descartes, a filosofia tornou-se uma forma de pensamento que se interroga sobre a capacidade do sujeito decidir o verdadeiro e o falso. Filosofia, agora, interroga as condições e os limites de acesso do sujeito à verdade. A filosofia deixou de ser um exercício de contemplação. Com Descartes temos acesso às condições internas do ato de conhecimento, a saber, as regras formais, o método, a estrutura do objeto a ser conhecido e a estrutura do sujeito cognoscente. O sujeito moderno reivindica para si o acesso à verdade. A filosofia moderna assume a tarefa, de caráter essencialmente epistemológico, cujo resultado é o abandonando de sua dimensão espiritual.
Essa nova definição da tarefa filosófica conduz, por sua vez, a uma mudança na concepção do sujeito. Uma vez que o sujeito pressuposto pelos exercícios espirituais é um sujeito ético e não um sujeito cognoscente: é um sujeito transformável, que se constrói, que se forma através dos exercícios, através das práticas, através das técnicas, etc. O sujeito moderno se resume ao sujeito de conhece, que produz conhecimento. Ser intelectual, sujeito do saber, é o objetivo do filósofo moderno: ele abandonou a sabedoria em nome do saber.
Com a morte prematura, Foucault não pôde desenvolver essa sua tese. Há elementos, em sua obra, que permite equiparar os exercícios espirituais ao processo de subjetivação do sujeito antigo. Mas essa equiparação se aplicaria ao sujeito moderno? Isso não parece provável. O fato é que boa parte dos processos de subjetivação do homem moderno estão em oposição a toda a tradição filosófica antiga. Além disso, para além da interpretação de Foucault, a filosofia de Descartes pode ser caracterizada como terapêutica: ele escreveu meditações metafísicas e cartas à moda estoica.
Conclusão
O que podemos concluir após essa breve exposição da passagem da filosofia como busca da sabedoria à filosofia como busca do saber? Fica evidente que há uma supressão dos exercícios espirituais do horizonte da filosofia moderna e contemporânea, à medida que há uma consolidação da filosofia como atividade puramente teórica, na qual a dimensão espiritual não faz parte. No entanto, há tentativas promissoras que visam resgatar o nexo entre o sujeito racional e os exercícios espirituais.
Nas obras de alguns filósofos contemporâneos, a exemplo de Hadot, este retorno é realizado como uma necessidade do sujeito, não como uma urgência da razão. Em outros termos: Sócrates questionava os seus conterrâneos tendo em vista às exigências da razão universal; hoje somos instados a pensar a filosofia como modo de vida como crítica à esterilidade da razão moderna. Não estamos confortáveis nem com a prática dos exercícios espirituais da religião cristã e nem com os progressos da razão moderna. Repensar a filosofia como exercício espiritual é uma necessidade contemporânea para avançarmos para além da herança do cristianismo e do cartesianismo.
A tarefa filosófica hoje é pensar repensando a tradição... É preciso não esquecer que os exercícios espirituais, através dos quais se exercita uma dimensão prática, que implica a concepção da filosofia como modo de vida, tornou-se estranha à tradição historiográfica da filosofia. O debate e o retorno ao tema é um modo de afirmar que o sujeito contemporâneo não é apenas aquele que sabe, mas é um sujeito ético que se constitui na relação consigo mesmo, com os outros e em diálogo com a tradição, em busca da sabedoria.
Referências
AGOSTINHO. Solilóquio · A vida feliz. São Paulo: Paulus, 1998,
CONFÚCIO. Os analectos. São Paulo: Unesp, 2012.
FOUCAULT, Michel. Sobre a genealogia da ética: um resumo do trabalho em curso. In: ______. Genealogia da ética. Subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 214-237. (Ditos e Escritos IX).
HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. São Paulo: É Realizações, 2014a.
HADOT, Ilsetraut. Seneque: direction spirituelle et pratique de la philosophie. Paris: Vrin, 2014b.
LAOZI. Dao De Jing: escritura do caminho e escritura da virtude com os comentários do Senhor às Margens do Rio. São Paulo: Unesp, 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PORFIRIO. Sobre la abstinencia. Madrid: Gredos, 1984.
ZHOU, Zhuang. O imortal do sul da China: uma leitura cultural do Zhuangzi. São Paulo: Unesp, 2022.