A verdadeira glória e o desejo de dominação em A cidade de Deus de Santo Agostinho
Adriano Martins Soler[1]
Esse texto tem como foco a análise do capítulo XIX do Livro 5 do A Cidade de Deus, para tanto, utilizaremos de uma interpretação estruturalista a fim de tentarmos traçar um esboço daquilo que intentava apresentar-nos o Bispo.
Agostinho inicia o capítulo XIX do livro 5 asseverando que há uma diferença entre o desejo de glória humana e desejo de dominação[2]. Aponta ainda que quem almeja a glória humana, tem certa inclinação ao desejo genuíno pelo domínio, porém, por desejar a glória e o louvor humano, acaba evitando descontentar àqueles que o julgam bem. O hiponense tem nos seus escritos a ideia de que alguém que busca o elogio de outrem, dificilmente faria algo para contrariar aqueles que o consideram em boa estima.
O bispo, na continuidade de seu texto, parece nos trazer um apontamento com certa dose de ironia. Afirma que há muitos que são julgadores dos atributos morais positivos, sem a necessidade eventualmente de possuí-las. No entanto, aqueles que são detentores destas qualidades morais, costumam prosseguir em direção ao seu objetivo, qual seja, a glória, a honra e o domínio. Prossegue diferenciando daqueles que desejam o domínio e poder, estes, sem se importar com quem desaprovem suas condutas, não receia alcançá-los pelos crimes mais abertos.
Diferencia o primeiro do segundo, declarando que se aquele que deseja domínio e poder não se importa em buscá-lo, ainda que, por meios vis; já aquele que deseja a glória ou luta para alcançá-la, seja pelo caminho justo, ou pela sua simulação, quando busca parecer bom sem assim ser. Assinala que aquele que possui virtudes demonstrará, ainda mais, sua virtuosidade, ao renunciar à glória, até porque, a atitude de abandoná-la é percebida por Deus, que a tudo percebe, mas não é claro ao juízo dos homens. Pois, se os homens suspeitarem que tal atitude é, na verdade, para alcançar algum enaltecimento, não haverá como comprovar que tal entendimento esteja equivocado.
Além disso, Agostinho desenvolve o raciocínio de que aquele que desprezar o julgamento daqueles que o adulam, provavelmente desconsiderará o julgamento infundado dos que suspeitam, mas se aquele for virtuoso, ainda assim, manterá o interesse na salvação destes. Afinal, aquele que é virtuoso, do Espírito de Deus recebe tal dom, e é dessa virtude que surge o desejo de amar seus inimigos, a ponto de desejar, sinceramente, que seus algozes se corrijam para que possa, das suas companhias desfrutar na pátria celestial. Porém, em relação ao bajulador, apesar de não se encantar com seus elogios, não deprecia seu afeto, nem tampouco busca iludir aqueles que o aplaudem. Por esse motivo, o justo, luta para que Deus seja louvado, pois é dEle o favor ao homem que o faz merecedor da glória.
Diferencia, a seguir, o hiponense, aquele que despreza a glória, mas é desejoso do domínio, este, na análise do bispo, supera os animais, seja pela crueldade, seja pela devassidão. Assim foram alguns romanos. Estes sequer se importavam com o que deles pensavam, para eles, somente o poder interessava. Agostinho lembra que muitos foram assim, mas de todos, foi Nero que atingiu o ápice dos vícios, da crueldade e da luxúria. Tanto que parecia uma contradição em si mesmo; portava tamanha libidinagem que em nada parecia ser masculino, ao mesmo tempo, era tão cruel que, quem não o conhecesse, diria que em nada era emasculado. Mesmo assim, enfatiza o filósofo, estes só têm o poder que tem, por concessão do próprio Deus[3], que o confere na medida que julga que os atos humanos merecem tais senhores. Por isso, está escrito em Provérbios, capítulo 8, verso 15: Por mim reinam os reis e os legisladores decretam a justiça. Não se pode julgar, no entanto, que aqueles a quem chamamos de tiranos foram reis cruéis e opressores, mas homens poderosos, conforme o significado da época.
Nesse momento do texto, após ter apontado seu entendimento acerca dos quais Deus ajudou os romanos à obter a glória, Agostinho cogita haver uma razão oculta para o favor divino – os méritos que os homens possuem e que são mais bem conhecidos de Deus do que do próprio homem. O bispo assevera que só é admissível a posse da verdadeira virtude àqueles que prestam o verdadeiro culto ao verdadeiro Deus, que só é possível vir daquele que é verdadeiramente pio, explicando que esta não é para a glória do homem e sim de Deus; aquele porém, que busca isso, ainda que secretamente, como glória pessoal, de forma alguma será agraciado pela verdadeira[4] virtude. Assim, aquele que não são virtuosos nos termos das Sagradas Escrituras, não são cidadão da Cidade de Deus, portanto, mais úteis à cidade terrena, pois possuem alguma virtude e não “a” virtude.
Cabe ressaltar ainda, que aqueles dotados da verdadeira piedade vivem uma vida “santa[5]” e se receberem de Deus a graça do poder para governar os povos[6], sendo certo que entende o quanto falta para alcançar a verdadeira justiça tal como é nos altos céus e, mesmo que, sua virtude seja alvo de louvores de glórias dos homens, em nada poderá se comparar aos inícios humildes dos santos, que têm esperança na graça e na misericórdia de Deus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura do texto A Cidade de Deus nos remete à crítica de uma Roma antiga que muitas vezes poderia ser confundida com um Brasil contemporâneo. Não é intuito desse trabalho, porém, estabelecer um paralelo entre esses dois mundos. Na verdade, o que nos interessa é apenas determinada qualidade paradoxal do homem na Roma retratada por Agostinho.
Buscamos investigar a diferença, se é que há, na busca da verdadeira glória do desejo de poder. Aponto, como deve ter ficado claro nas linhas anteriores que, em Agostinho há distinção do primeiro para o segundo.
O bispo, quando fala sobre aqueles que buscam a verdadeira glória, parece indicar que esse interesse acaba sendo positivo para o povo. Ora, se se esforça para alcançar a glória, dificilmente fará isso oprimindo àqueles que o glorificam, por essa razão improvavelmente a sociedade sofreria nas mãos deste.
Distintivo é o segundo do primeiro, e para isso, Agostinho chega a citar Nero. Aquele que deseja o poder, não tem escrúpulos para alcançá-lo. Fará isso da maneira que quiser, conforme consiga. Pois, nesse caso, busca saciar seu desejo de domínio. Tal desejo, não oferece saciedade, senão, no próprio sentido do “dominar”. Se para chegar a esse intento precisasse encoleirar àqueles que o desafiam, assim faria.
O hiponense menciona também o justo, que não busca a glória nem o poder, mas que, pode recebê-las do favor divino. Este, para o povo, segundo Agostinho é o melhor modelo de governante, pois, sempre se submeterá aos ditames do verdadeiro Deus a quem cultua.
Importante frisar que Agostinho entende o poder dado aos governantes como uma forma de Deus tratar um povo. O povo que se distancia dEle, que pratica o mal, poderá receber de Deus, um governante que o oprima. Entretanto, ressalta-se que, no pensamento do bispo, todo estadista, só o é (estadista), por vontade divina. E isso, nos lembra da inicial comparação entre Roma e Brasil, mas tal tema, fica para um próximo trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. 8ª reimpressão. Nova edição, revista e ampliada. Tradução: E. M. Balancin et al. São Paulo: Paulus, 2012.
SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Parte 1. Tradução de Oscar Paes Leme. Petrópolis. Editora Vozes, 12ª edição, 1989.
________. A Cidade de Deus. Vol. 1. Tradução de J. Dias Pereira. Lisboa. Serviço de Educação Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1996.
________. The City ofGod. Tradução Livre. Disponível em https://www.newadvent.org/fathers/120105.htm.
[1] Advogado, professor de Direito e Filosofia, mestre em Filosofia (PUC-SP), doutorando em Filosofia (UFABC)
[2] O termo que se tem utilizado na tradução da Editora vozes é “cupidez”, que aparentemente está mais perto do original latino cupiditatem. O italiano traduz o termo para passione, e a versão portuguesa da Edição da Fundação Calouste Gulbenkianpara paixão.
[3](...) porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Romanos 13:1,b
[4] O uso contínuo do termo “verdadeiro(a)” é proposital, vai além de um jogo de palavras e quer expressar de maneira clara aquilo que Agostinho aponta em seu texto.
[5] Utilizamos o adjetivo “santa” à vida, com o significado de separado dos demais, não como beatitude.
[6] Nesse momento, Agostinho reflete quão bem-aventurado é para o povo, ser governado por um homem piedoso. Explica ainda, que este entende que tudo o que tem veio pela graça divina.