O Relativismo linguístico: aproximações entre Humboldt, Whorf e Flusser
Vanice Ribeiro
Mestre em Filosofia/USP
Doutora em Filosofia/UNIFESP
As primeiras produções de Vilém Flusser tratam especificamente sobre a língua e foram escritas quando morava no Brasil. Língua e realidade de 1963 foi sua primeira publicação em livro e foi escrita em português quando Flusser já estava há mais de vinte anos morando em São Paulo. No texto procura estudar a condição da linguagem levando em consideração a diversidade e a qualidade relativa das línguas. Sua vida no Brasil fez com que se deparasse e se surpreendesse com a constatação de que não existe um caráter universal das categorias da língua e, por isso, todo pensamento filosófico depende intelectualmente da língua na qual se pensa. A experiência de Flusser com a língua portuguesa mostrou que as categorias das línguas grega e alemã não são universais. Assim, afirma que não existem categorias universais do pensamento, mas categorias de cada língua, o que ocasiona um relativismo ontológico e linguístico. Constata Flusser que as diferentes línguas podem ser comparadas entre si e nisso consiste um dos sentidos de Língua e realidade (2004), a comparação de diferentes realidades intelectualmente construídas por meio da língua.
O objetivo de Flusser é expor a condição ontológica da língua fazendo certo uso da fenomenologia husserliana e identificar a estrutura da realidade à estrutura da língua. Numa breve explicação isso consiste em tomar como princípio a afirmação de que o ser humano, que podemos chamar de “espírito”, tende a avançar da “aparência” para a “realidade” (FLUSSER, 2004, p. 30). O espírito busca alcançar a realidade em si enquanto noumena e descobrir uma ordem fugindo do caos de uma realidade “amorfa” ou radicalmente desorganizada, o que seria viver no absurdo. Segundo Flusser (2004, p. 33), “o objetivo deste trabalho é contribuir para a tentativa de tornar consciente a estrutura desse cosmos restrito. Será proposta a afirmação de que essa estrutura se identifica com a língua”. Ou seja, o espírito, na tentativa de descobrir a realidade em si, acaba compreendendo que essa realidade é a estrutura da língua na qual o intelecto pensa. A língua seria definida como um sistema de referência para se construir a realidade objetiva.
Segundo Flusser (2004, p. 32)
[...] a estrutura que procuramos descobrir, embora menos majestosa e mais modesta do que no início nos pudesse ter parecido, continua intocada e intocável pelas objecções levantadas. Poderemos, a despeito delas, continuar buscando, isto é, vivendo. O conhecimento, embora menos absoluto, continuará sendo conhecimento; a realidade, embora menos fundamental, continuará sendo realidade; e a verdade, embora menos imediata, continuará sendo verdade.
Esse posicionamento relaciona a filosofia de LR (2004)1 aos estudos da linguagem da virada do século XVIII para o XIX, principalmente aos estudos de Wilhelm von Humboldt (1767-1835). Flusser faz uso do vocabulário e de uma ontologia relacionadas a essa perspectiva, conforme atestamos na explicação abaixo sobre os estudos da linguagem desse período.
De modo geral, é possível dizer que são dois os traços fundamentais dessa virada linguística avant la lettre: em primeiro lugar, como consequência da superação da concepção tradicional da linguagem enquanto “instrumento”, enquanto simples meio para a expressão de pensamento pré-linguísticos, ela é considerada como elemento constitutivo do pensamento e do conhecimento e, nessa medida, é considerada como condição de possibilidade tanto da objetividade da experiência quanto da intersubjetividade da comunicação; em segundo lugar, essa nova concepção de linguagem conduz a uma necessária destranscendentalização da razão: a linguagem manifesta-se sempre em línguas particulares e históricas e não permite, por isso, uma separação estrita entre o transcendental e o empírico, entre o a priori e o a posteriori. (SEGATTO, 2009, p. 192, 193)
Nesse sentido,
Em sua dimensão cognitivo-semântica, essa mudança consiste em encarar a linguagem não como um mero sistema de signos, não como algo objetificável (intramundanamente), mas como algo constitutivo da atividade de pensar, como a própria condição de possibilidade dessa atividade. A linguagem é, então, elevada a um estatuto quasi-transcendental, que reivindica contra a subjetividade a autoria das operações constitutivas da visão de mundo do sujeito (…) (LAFONT apud SEGATTO, 2009, p. 194).
Conforme Humboldt (2006, p. 77), em seu estudo comparativo das línguas,
Através da dependência recíproca do pensamento e da palavra fica evidente que as línguas na verdade não são meios para a representação da verdade conhecida, mas sim muito mais para a descoberta do anteriormente desconhecido. A sua diferença não reside nos sons e signos, mas na diferença de concepções de mundo em si. Aqui se encontra o motivo e o último objetivo de toda pesquisa linguística. A soma do que é cognoscível fica, como um campo a ser trabalhado pelo espírito humano, num ponto médio entre todas as línguas, e independente delas.
Nessa interpretação não teríamos um sujeito transcendental com categorias a priori do entendimento e da sensibilidade, mas a linguagem que anula o postulado de um sujeito transcendental. A linguagem determina a visão de mundo do indivíduo, funcionando como uma categoria a priori, ao mesmo tempo que é empírica, idiomática, de caráter a posteriori. Nesse sentido, é a linguagem que constrói o mundo e não as categorias do sujeito. Em vez de garantirmos a objetividade da linguagem por meio de um sujeito transcendental com categorias a priori, assegurando assim a universalidade formal, temos a intersubjetividade que faz com que a realidade seja construída entre sujeitos, por meio das diferentes perspectivas. Nessa dimensão considerada pragmática
A compreensão da linguagem como atividade revela-se na ideia da unificação através do diálogo. No lugar do “eu penso” kantiano – associado à unidade transcendental da apercepção –, Humboldt coloca a intersubjetividade, representada pelas diferentes perspectivas dos participantes da comunicação, que buscam alcançar um entendimento entre si sobre algo no mundo. (SEGATTO, 2009, p. 195)
Ao vincularmos o relativismo linguístico de LR (2004) à perspectiva de Humboldt não podemos deixar de citar sua relação à hipótese Sapir-Whorf, formulada no século XX à luz do determinismo linguístico acima descrito e que justifica o relativismo linguístico de um ponto de vista teórico, podendo ser assim explicitada: “nós percebemos o mundo através da nossa língua e os falantes de diferentes línguas percebem o mesmo mundo de maneira diferente” (HEIDERMANN, 2006, p. XLIII). Apesar da hipótese formulada levar os nomes de dois teóricos da linguagem, Edward Sapir (1884-1939) e Benjamin Lee Whorf (1897-1941), sua enunciação condiz muito mais à teoria de Whorf.
Em Lee Whorf há uma relação intrínseca entre cultura e língua, seu determinismo linguístico não é biológico, mas cultural. A raiz de seus estudos remete ao seu mestre Edward Sapir e ao antropólogo Franz Boas (1858-1942) (GONÇALVES, 2008). O percurso teórico que liga a tradição alemã do determinismo linguístico de Humboldt, Herder e Hamman à tradição norte americana de estudos linguísticos é firmado por meio de Boas, Sapir e Whorf,
Essa ponte entre o pensamento germânico sobre a linguagem [...] e a linguística estruturalista científica de bases etnológicas e antropológicas dos Estados Unidos pode ser traçada de Humboldt a Boas, de Boas a Sapir e de Sapir a Whorf [...]. (GONÇALVES, 2008, p. 73)
Boas pode ser considerado, inclusive, um influenciador direto da tese Sapir-Whorf que caracteriza o relativismo linguístico do século XX. Esses estudos são marcados pela pesquisa da língua dos nativos norte-americanos e trata-se de um estudo antropológico que visava eliminar o exotismo cultural de certas comunidades. Sapir elaborou uma teoria mais interessante dentro desses estudos, o qual, ainda que aproximando linguagem e pensamento, não identificou os dois como equivalentes (GONÇALVES, 2008). Já Whorf identifica radicalmente linguagem e pensamento, o que gera um determinismo profundo. Por isso, o nome de Sapir à hipótese Sapir-Whorf é questionado por alguns teóricos (GONÇALVES, 2008).
A tese de Whorf da relação entre cultura e língua afirma que povos considerados menos desenvolvidos industrialmente teriam uma percepção complexa de mundo, não podendo ser considerados “atrasados”. Seu principal argumento é de que a língua hopi dos indígenas norte americanos não separaria o espaço do tempo, já lidando com uma perspectiva einsteiniana da relatividade. Isso significa que os Hopi já teriam uma visão de mundo einsteiniana não tendo passado por uma perspectiva newtoniana, o que corrobora a afirmação de que não existe um parâmetro universal de evolução da existência humana num sentido epistemológico.
A proposta de um relativismo epistemológico é interessante, na medida em que inverte uma outra crença, essa sim muito mais brutal: a de que a ciência ocidental é completamente equivalente à verdade objetiva última e inquestionável. É a partir da relativização da influência das línguas nos nossos sistemas intelectuais que Whorf parece propor algo muito mais caridoso: a relativização dos sistemas de crenças epistemológicas. (GONÇALVES, 2008, p. 96, 97)
Interessante notar que tais estudos sobre a linguagem, feitos no início do século XX, foram considerados estudos com um toque de autodidatismo, por uma certa antropologia ainda não reconhecida cientificamente. Tais estudiosos eram adeptos a uma compreensão dos povos, mas com abordagem um pouco distinta daquela romântica ligada principalmente aos estudos de Herder, Hamann e Humboldt, ainda que influenciada por estes. Boas era formado em física e interessou-se pelo estudo antropológico da linguagem ao viajar com um grupo para Baffinland, terra inuíte esquimó (GONÇALVES, 2008). Whorf, por exemplo, nem sempre foi levado a sério por alguns estudiosos, era engenheiro químico de formação e trabalhava na área de prevenção de incêndios. Curioso notar que Flusser também tem essa característica, considerado por muitos como um filósofo pouco acadêmico, sobretudo pela maneira de escrever e a publicação de LR não foi bem aceita pelos teóricos e acadêmicos brasileiros na época.
No caso de Flusser esse relativismo linguístico de tipo whorfiano aparece em seu projeto de manipulação da língua portuguesa a fim de favorecer o pensamento filosófico nacional brasileiro, no sentido de reinaugurar uma filosofia perennis à maneira dos escolásticos, como afirma em LR (2004). Isso pressupõe seu engajamento na língua portuguesa, condicionado à relação entre língua e sociedade. Acredita que possa contribuir, por meio da língua, com o desenvolvimento da sociedade brasileira, esta à margem do que chama de “conversação ocidental”, fazendo uso de um processo de tradução. Quando Flusser vive sua primeira condição de migrante apátrida no Brasil – quando é forçado a sair de Praga por causa da invasão nazista – privilegia a língua portuguesa com o intuito de usá-la como forma de engajamento social. Assim como em Humboldt e Lee Whorf, a condição do sujeito é participar da conversação, caso contrário, não seria possível nem pensar nem dizer, já que a língua é condição do pensamento e não é produzida pelo pensamento, é realidade compartilhada, herdada culturalmente, o que aponta para uma saída pela intersubjetividade.
Podemos aproximar a tese de LR a um estudo da linguagem de dois modos: de um lado por Humboldt que, ao “elevar” ontologicamente o status da língua como condição de pensamento, afirma a identidade entre pensar e dizer; e por meio da tese de Lee Whorf que relativiza o valor cultural de cada língua numa relação radical entre língua e cultura. A aproximação de Whorf a Flusser é o que sugere Rui Lopo (2011). Segundo Lopo (2011, p. 08), “Lee Whorf [...] ao estudar certos indígenas americanos, teria radicalizado e amplificado o peso da língua na sua percepção do mundo, como que definindo a diferença linguística como uma diferença de mundos.” E aponta ser possível nesse contexto compreendermos a teoria de Flusser como “uma extensão hiperbólica e superficial da posição de Lee Whorf às línguas modernas europeias, reduzindo a estrutura da realidade investigável à estrutura da língua” (LOPO, 2011, p. 08). E “seria inegável que em cada língua vive a experiência de um povo, a qual modalizou a estruturação linguística e em contrapartida foi por ela modalizada” (LOPO, 2011, p. 09).
Podemos afirmar também, segundo Lopo (2011, p. 09) que
[...] a linguagem incorpora em si um todo de sentido que ultrapassa cada indivíduo e lhe transmite um mundo como herança, onde a experiência das gerações passadas continua a viver e não apenas está arquivada como os códices nas bibliotecas e as obras de arte nos museus. Este mundo constitui, para os indivíduos e as sociedades a que pertencem, a atmosfera e o horizonte da sua existência. Cada linguagem faz da língua uma mundividência ou um mapa cosmológico em que a existência dos indivíduos e da sociedade se insere e enquadra.
Flusser afirma, à maneira de Humboldt e Whorf, que a linguagem é condição para o pensar e o pensar sempre necessita de uma língua que agrega uma visão de mundo. Assim, pensamento e língua são o mesmo e são o mesmo num determinado cosmo, numa determinada realidade. Por isso, não existe nada para além da língua.
Ao tentar salvar a linguagem de alguma sua desvalorização filosófica, propõe Flusser dramaticamente uma solução extrema: que a língua não tem exterior. Que é difícil distinguir o ser do dizer-do-ser e este do pensar, na medida em que o pensar é sempre um dizer (e vice-versa) pelo que o pensar do ser por palavras dispensa a posição exterior do ser em relação a essas mesmas palavras que, mais do que meio de dizer o ser devem ser entendidas como o único ser que nos é acessível (LOPO, 2011, p. 08)
Com isso,
Radicaliza-se aqui a posição onto-gnosiológica crítico-transcendental kantiana, na medida em que já nem sequer é necessário presumir a existência de um númeno, entendido como um qualquer estofo impressivo (eventualmente assumido como material) mas incaracterístico fora do aparelho categorial e das formas puras do espaço e do tempo. (LOPO, 2011, p. 08)
Flusser evita ao máximo postular a existência de um sujeito transcendental. No entanto, não podemos deixar de observar que o argumento do relativismo linguístico de modo geral reside numa herança de Kant: a língua é que assume a condição das categorias kantianas.
Podemos concluir que a aproximação entre Humboldt, Whorf e Flusser, apresentada neste artigo, expõe a tese central do relativismo linguístico: nessa interpretação a língua determina visões de mundo.
Notas
1Daqui em diante abreviaremos para LR a referência à Língua e realidade.
REFERÊNCIAS
FLUSSER, V. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2004.
________. Língua e realidade. São Paulo: É Realizações, 2021.
GONÇALVES R. T. Perpétua prisão órfica ou Ênio tinha três corações: o relativismo linguístico e o aspecto criativo da linguagem. Curitiba: UFPR, 2008. 250 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008.
HEIDERMANN, W.; WEININGER, M. J. (orgs.). Humboldt: língua, literatura, bildung. Florianópolis: UFSC, 2006.
HUMBOLDT, W. Sobre o estudo comparativo das línguas em relação com as diferentes épocas do desenvolvimento das línguas. Tradução de Luiz Montez. Humboldt: língua, literatura, bildung. Florianópolis: UFSC, 2006.
LOPO, R. Uma Reinterpretação linguística da ontologia. Flusser Studies, n. 11, 2011. Disponível em: <http://www.flusserstudies.net/sites/www.flusserstudies.net/files/media/attachments/rui-lopo-uma-reinterpretacao.pdf>.
SEGATTO, A. I. Breve nota sobre Wilhelm von Humboldt e a filosofia alemã da linguagem. In: HUMBOLDT, W. Sobre pensamento e linguagem. Tradução por Antonio Ianni Segatto. Trans/Form/Ação, São Paulo, 32(1), 2009. Disponível em <http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/transformacao/article/view/1002/903>.
WHORF, B. L. Language, mind and reality. Disponível em: <http://www.biolinguagem.com/ling_cog_cult/whorf_1942_language_mind_reality.pdf>.
Vanice Ribeiro
Mestre em Filosofia/USP
Doutora em Filosofia/UNIFESP