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NÃO SEI, SÓ SEI QUE É ASSIM:

DAVID HUME E O PROBLEMA DA CAUSALIDADE

 

DIEGO CARMO DE SOUSA

Licenciado em Filosofia – (UESB)

Mestrando em Filosofia – (UFMG)

 

Introdução

 

Em verso bastante conhecido, Hamlet escreve para Ofélia que ela poderia duvidar de que o Sol tivesse calor, mas não do amor que ele sentia por ela. Assim, o amor que ele sentia por ela era tão certo e verdadeiro quanto o fato de que o Sol produz calor e aquece o que toca.  Mas será que, de fato, podemos estar seguros de tal relação entre o Sol e o calor? Ora, direis, duvidar de tamanha obviedade? Certo perdeste o senso, diria Olavo Bilac. De fato, é comumente assente pelo senso comum de que todo efeito decorre de alguma causa.

Sempre que amanhece e o astro rei surge imponente no céu, sentimos nítida e claramente na pele o ardor dos seus raios. Sempre foi assim e temos a tendência de crer, inabalavelmente, que assim sempre ocorrerá. Essa ideia de causa e efeito é tão estabelecida no senso comum que Aristóteles, no seu livro sobre a Física, preceituava que só podemos dizer que conhecemos algo quando conhecemos suas causas (Livro III, 194b20).

Entretanto, tal pode não se dar da forma que pensamos. O filósofo inglês David Hume (1711-1776) se interessou pelo estudo da origem dos nossos conhecimentos e assentou que a experiência é o limite deles. Sua principal obra, o Tratado da natureza humana, foi publicada pela primeira vez em 1739. Foi um dos mais importantes nomes do assim chamado empirismo inglês e sua influência na História da Filosofia foi tamanha que o próprio filósofo Immanuel Kant (1724-1804), em sua Introdução aos prolegômenos a toda metafísica futura (1783) prestou-lhe reverência afirmando que ele interrompeu o seu sono dogmático.

Ante a concepção de alguns filósofos anteriores que afirmavam que seria possível a existência de conhecimentos independentes dos dados sensíveis, Hume objetou declarando que a nossa experiência é o limite do que podemos conhecer. A abordagem cético-realista, afirma que Hume acreditava, de alguma forma, em algo além da mera regularidade.

Segundo esta abordagem Hume defende uma proposição epistemológica, que em síntese defende: “não podemos conhecer conexão necessária”, mas não uma proposição ontológica, ou seja, que “não há conexão necessária”. A sucessão regular, assim, seria suficiente para que notássemos que existe algo que mantem a ordem na natureza, rejeitando-se a hipótese de que essa aparente ordem poderia ser fruto do acaso.

 

Discussões precedentes sobre a ideia de causa

 

Um dos primeiros formuladores do princípio de causalidade foi Platão, o qual escreveu no Timeu que “tudo o que se torna ou muda deve o fazer devido a uma causa; pois nada pode vir a ser sem uma causa” (28a). Por sua vez, Aristótelesentendia que conhecer é conhecer as causas. Diz-nos ele que:

 

Feitas estas distinções, temos que examinar as causas, quais e quantas são. Posto que o objeto desta investigação é o conhecer e não cremos conhecer algo se antes não estabelecemos em cada caso o “porquê” (o que significa captar a causa primeira) (ARISTÓTELES, 1995, III, 194b15-20).

 

Como o leitor pode deduzir, para Aristóteles, causa é tudo aquilo que explicaria um movimento. Este não poderia ser satisfatoriamente explicado sem que fosse esclarecida, com precisão, a partir das quatro causas: qual a matéria que fora afetada? Qual a forma adquirida nesse movimento? Qual o agente da mudança? e, finalmente, Qual a sua finalidade?Responder estas perguntas seria conhecer a causa. Em termos comuns, a causa seria a unidade dos diversos elementos que poderiam responder ao porquê.

Alguns filósofos empiristas, como John Locke (1632-1704) e George Berkeley (1685-1753), em que pese acreditarem que a experiência é o limite de nosso conhecimento, também acreditavam em algo como causa. Para comprovar a existência de Deus e da realidade extracorpórea, Locke, por exemplo, socorre-se na ideia de causalidade. Assim, Deus seria a causa última da nossa existência e os corpos seriam a causa de nossas sensações:

 

Assim, partindo da consideração de nós próprios e do que infalivelmente encontramos na nossa própria constituição, a nossa razão leva-nos ao conhecimento desta verdade certa e evidente – que há um Ser eterno, poderosíssimo e sapientíssimo e pouco importa que alguém lhe chame Deus ou não. A coisa é evidente: desta ideia devidamente considerada facilmente se deduzirão todos os outros atributos que devemos atribuir a este Ser eterno (LOCKE, 2010, p. 861).

 

Do mesmo modo, sobre o conhecimento da existência das coisas extracorpóreas:

 

A recepção afetiva das ideias que vêm do exterior é que nos dá notícia da existência de outras coisas e nos faz saber que alguma coisa existe naquele momento fora de nós, o que causa essa ideia em nós, embora talvez nós nem saibamos nem consideremos a maneira como se produzem (LOCKE, 2010, p. 875).

 

George Berkeley, filósofo e bispo irlandês, também acreditava que Deus seria a causa das nossas ideias, ou seja, a nossa mente recebe as ideais diretamente de Deus. Deus seriaa causa diretamente responsável pela nossa percepção das ideias, imprimindo-as em nossos sentidos:

 

Quando em plena luz do dia abro meus olhos, não está em meu poder decidir se verei ou não, ou determinar que objetos em particular se apresentarão à minha vista; e assim igualmente quantoà audição e aos outros sentidos: as ideias impressas neles não são produtos da minha vontade. Existe, portanto, alguma outra vontade ou espírito que as produz (BERKELEY, 2010, p. 76).

 

Porém, o filósofo David Hume leva as ideias empiristas a uma maior radicalidade. Para ele, o nosso conhecimento sobre os fatos se limita às impressões atuais e às recordações das impressões passadas. Nesse sentido, não poderia haver impressão de fatos futuros, considerando que ou elas são atuais ou recordações passadas. Assim, não haveria uma ideia de causa, ou seja, de uma conexão necessária entre uma causa e um efeito.

A causalidade, como o leitor pode notar, tem uma longa história. Formulada por Platão e elevada a princípio epistemológico por Aristóteles, a causalidade tornou-se o fundamento epistemológico-divino em Locke e Berkeley. O filósofo escocês David Hume fará uma crítica severa a este princípio. É o que pretendo apresentar no item seguinte.

 

A ideia de causa em David Hume

 

A abordagem mais radical da ideia de causalidade realizada por David Hume. Ele aafirma que, na relação entre causa e efeito há apenas dois fatos em comum: a contiguidade e a sucessão temporal. Como não temos certeza da existência de uma conexão necessária. O que podemos observar é a contingência: “todos os objetos que consideramos causas ou efeitos são contíguos” e mesmo que “objetos distantes pareçam por vezes produzir-se uns aos outros, mediante exame descobre-se que geralmente estão ligados por uma série de causas contiguas entre si e aos objetos distantes” (HUME, 2001, p. 110).

Para este filósofo, são os dados sensíveis que afetam nossos sentidos e nos causam impressões que podemos recordá-las depois. É o acúmulo de impressões que produz as ideias. Um exemplo bem simples e comum a todos nós pode ser este: quando olhamos para o céu nossos sentidos são afetados pelo que vemos. A isso Hume chama impressões. Mais tarde, na solidão do meu quarto quando quero escrever uma poesia sobre a beleza do céu, tenho que me recordar dessas impressões no meu pensamento. Essas são as ideias. Hume as distingue da seguinte maneira:

 

Todas as percepções do espírito humano reduzem-se a duas espécies distintas que denominarei impressões e ideias. A diferença entre estas reside nos graus de força e vivacidade com que elas afetam a mente e abrem caminho para o nosso pensamento ou consciência. Às percepções que penetram com mais força e violência, podemos chamar-lhes impressões; [...]. Por ideias entendo as imagens tênues das impressões nos nossos pensamentos e raciocínio (HUME, 2001, p. 29).

 

Ambas fazem parte do que ele chamou de percepção. Hume tratará da ideia de causa e efeito a partir da Seção II, Parte III, do referido Tratado. Para ele, o conhecimento verdadeiro só pode ter origem a partir de alguma impressão. De fato, se a experiência limita nosso conhecimento e só conhecemos a partir das impressões, estas mais vívidas que as ideias, podemos dizer que, em última análise, são as impressões os limites do que podemos conhecer. Desse modo, ou temos as impressões do que nos afeta agora ou ideias de impressões passadas.

No exemplo citado, temos agora a impressão do Sol e da nossa pele aquecida. Mais tarde, teremos as ideias dos dois, quando nos recordamos deles. Mas não poderemos afirmar com segurança de que amanhã o Sol, se aparecer, vai aquecer minha pele. Isso porque não temos impressões de coisas futuras, mas acreditamos que tal se dará apenas por hábito, uma crença de que o que aconteceu até aqui se repetirá. Não há, pois, uma relação de necessidade entre o Sol surgir e aquecer meu rosto.

Essa relação não se dá no âmbito desses dados, desses objetos, mas na minha mente. Sempre que amanhece e a luz solar entra no meu quarto e alcança meu rosto, sinto-o ruborescer. Essas duas impressões aparecem uma após a outra, o que me leva a crer que haja entre elas uma relação de causa e efeito. Naturalmente, então, faço uma inferência causal: o raiar do Sol e causa do rubor do meu rosto. Entretanto, como dizemos anteriormente, o limite de nosso conhecimento são as impressões: temos a impressão dos raios solares, temos a impressão do aquecimento da pele, mas não temos a impressão da conexão entre as duas.

O que podemos afirmar, apenas, é que sempre percebemos uma relação temporal entre ambos: percebemos um (o raiar do Sol) e depois o outro (o rubor do meu rosto). Como não temos impressões de fatos futuros, não podemos afirmar, de forma categórica e tomar como verdade, que essa relação de contiguidade ocorrerá sempre. O que temos então? Temos apenas uma suposição de que assim sucederá em decorrência do hábito. Apesar disso, essa crença, essa suposição, é suficiente para que o ser humano possa viver e seguir a vida.

 

Toda causa tem um efeito

 

Podemos apresentar um outro exemplo para reforçar a ideia de causalidade em Hume: sempre observamos que quando colocamos alguma roupa no varal e chove, caso não as retiremos a tempo, elas molharão. Temos a impressão do molhado e da chuva e a relação de contiguidade entre elas, ou seja, observamos que acontece algo (a chuva) e logo depois observamos um efeito (a roupa molhada). Assim,  a certeza que temos de que se não tirarmos as roupas do varal quando chove, elas irão molhar, não decorre de um conhecimento verdadeiro nos moldes traçados por Hume, mas de uma crença baseada no hábito.

Do que foi dito antes podemos concluir que a relação entre uma causa (chover) e um efeito (molhar a roupa) gera uma crença suficiente para que, caso chova, não  deixemos as roupas ao relento. Mas não apenas isso: esta mesma  crença pode ser e, na maioria das vezes é,  suficiente para levar a vida e nos ajustarmos às condições metereológicas, por exemplo. No entanto, esse modo de proceder, através da crença na relação causal,que é tão útil na prática, não é suficiente para alargarmos nosso conhecimento. A razão disso se deve ao fato, como dissemos antes, de que esta relação não se aplica a algo  do qual nunca tivemos experiência (aquela dimensão futura, que a ampliação do conhecimeno requer).

Tomando-se rigorosamente as lições de Hume não poderíamos, com base na relação de causa e efeito, afirmar a existência da realidade exterior, ou seja, extracorpórea. Não é possível fazer uma inferência ou relação entre uma impressão e a realidade de algo que está para além delas. Eu sinto esta tela de computador porque, ao tocá-la, ela afeta meus sentidos e causa em mim uma dada impressão. Entretanto, não posso basear um conhecimento verdadeiro partindo da inferência de que exista uma realidade corpórea exterior a simples impressão que afeta meus sentidos.

Tal inferência não pode ser considerada válida para assentar um conhecimento verdadeiro. Do mesmo modo, não podemos ter conhecimento de Deus porque dele não temos impressão alguma. Esse pensamento de Hume se difere bastante do racionalismo do filósofo francês René Descartes (1596-1650), por exemplo, ao estabelecer na Terceira Meditação de suas Meditações sobre filosofia primeira (1641) que podemos ter uma ideia de Deus e que esta ideia seria a garantia da existência de uma realidade corpórea por Deus ser veraz e infinito.

Esperamos ter deixado claro, que o esfoço de Hume não advoga em favor do acaso. A noção da existência de uma sucessão regular, de uma regularidade, seria suficiente para percebermos que existe certa ordem na natureza. Na parte VI dos Diálogos sobre a religião natural(1779), o personagem Philo afirma que “não estimo nenhum mais plausível do que aquele que atribui ao mundo um princípio de ordem eterno” e que por isso “o acaso não tem lugar em nenhuma hipótese, seja ela cética ou religiosa” (HUME, 2016, p. 67).

Desse modo, como o acaso não pode explicar a sucessão regular, David Hume  acaba reconhecendo que há algo na natureza que nos é oculta e mantém a regularidade dos eventos. Assim, o que Hume defende é a proposição epistemológica segundo a qual “não podemos conhecer a conexão necessária”, mas não defende a proposição ontológica de que “não existe essa conexão necessária”. Por isso, ele, em verdade, rejeita a hipótese de que a aparente ordem na natureza poderia ser fruto do acaso.

 

Conclusão

 

A doutrina de David Hume leva-nos, como se pode deduzir, a um ceticismo – classificado como moderado ou acadêmico, mas jamais pirrônico –, considerando que não podemos afirmar a existência de conexões necessárias entre nossas impressões, uma vez que o nosso conhecimento se limita ao que percebemos a partir do que experimentamos através dos sentidos. Os eventos, assim, acontecem e afetam nossos sentidos, não havendo uma conexão necessária entre eles. Somos nós que inferimos a relação entre causa e efeito através do impacto que as impressões causam em nós, em razão do costume, do hábito, ou através de uma expectativa.

Apesar disso, Hume rejeita a atuação do acaso na regularidade na natureza. A sucessão regular seria suficiente para que notássemos que existe algo que mantém a ordem, rejeitando-se a hipótese de que essa aparente ordem poderia ser fruto do acaso.A noção de que esses eventos se repetirão no futuro careceria de fundamentação empírica. Em suma, por se basear em uma crença, o príncipe Hamlet pode dizer para Ofélia que a ama com mais certeza de que o Sol produza calor e ela poderá assim crer, mas com cautela.

 

Referências

 

ARISTÓTELES.Física.Madrid: Gredos, 1995.

 

BERKELEY, George. Obras filosóficas. São Paulo: UNESP, 2010.

 

HUME, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.

 

______.Diálogos sobre a religião natural. Salvador: EDUFBA, 2016.

 

LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano.4 ed.Lisboa: Calouste Gulbenkian,2010.

 

PLATÃO.Timeu - Critias - O Segundo Alcibiades - Hipias Menor. Belém: UFPA, 2001.