Relação familiar: A primeira re-construção necessária para realização da Justiça
O homem está em constante relação com o outro, nessa convivência necessária, a primeira relação que se avizinha é a relação entre o homem e a mulher, isto é, a relação erótica, posto que essa é a relação originária que possibilita o surgimento do outro. Como toda e qualquer relação, esta também pode ser entre seres livres ou entre livres e dominados.
A ontologia da totalidade, desde os gregos, elimina a possibilidade de alteridade na relação sexual, privilegiando sempre a mesmidade, do que adveio a exclusão da mulher enquanto ser livre, e sua consideração apenas e tão somente como procriadora, isto é, objeto utilizado pelo homem para a perpetuação da espécie. Também na Modernidade a mulher cumpriu o mesmo papel de objeto sexual, servindo aos nobres no início e depois, aos burgueses. Ocupou sempre o papel de dominada, oprimida pelo homem, que lhe permitiu, num gesto que podemos dizer astuto, o domínio da criação do filho, o que, na verdade, serviu para a perpetuação do pensar totalitário e dominador, vez que o filho, crescendo dominado, num determinado momento passava a dominador, imitando, então, o comportamento do pai.
A contrário do que pensavam os gregos, Enrique Dussel entende que a visão tem pouca ligação com o eros, porquanto o tato, a ternura, a respiração, o calor etc., têm função muito mais importante e são os constituintes próprios da relação erótica, a qual supera a ótica e se define melhor por amar. Assim, entendemos que é necessário pensar o outro na relação sexual não como continuidade de si mesmo, mas como ser autônomo, como novidade que deve ser amada por bondade e não como possibilidade de eterno retorno ao mesmo, e jamais o filho poderá ser dito meu.
Essa relação deve, pois, ser pautada por um amor-de-justiça, em que o outro será sempre respeitado enquanto ser autônomo e livre, envolto em certo mistério incompreensível do seu ser, mesmo no ato sexual propriamente dito, em que o contato carnal é máximo, como que formando um só corpo, mas mantendo, todavia, cada um, sua autonomia.
Passados os momentos da helenicidade, em que o amor perfeito somente era possível entre os iguais e, portanto, entre os varões; e da modernidade, em que a mulher não conseguiu superar o pensamento machista suportado pela subjetividade cartesiana e hegeliana, verifica-se, ainda hoje, o domínio do homem sobre a mulher, agora expresso pela superioridade econômica, principalmente, como que impondo uma fealdade ao pobre e à sua dor e elegendo o rico como a beleza a ser imitada.
Na América Latina, originariamente, encontramos diversas sociedades onde a mulher ocupava papel fundamental na organização social, ao contrário do que ocorria na Europa. Diante da conquista européia, contudo, a cultura machista e dominadora se infundiu na nossa América, e a opressão da mulher vem-se firmando a cada dia, e constituindo a mulher latino-americana a periferia da periferia. Por isso irrompem os movimentos libertários, que buscam a autonomia devida da mulher. Importante ressaltar, entretanto, que os movimentos de libertação feminina não podem se fundar nos mesmos pilares totalitários vigentes na sociedade atual, sob pena de apenas se inverterem os pólos de dominação. É fundamental o surgimento de uma nova relação entre homem e mulher, em que se respeite, fundamentalmente, a alteridade, a autonomia e liberdade do outro.
Da relação erótica surge, em seguida, a relação pedagógica. É que da primeira surge um novo ser, que inserto na sociedade, deverá ser con-duzido para a abertura de suas possibilidades a se realizarem paulatinamente. Mas essa liberdade de possibilidades começa a encontrar obstáculos diante da criação dominadora a que é imposto pelos pais, a começar pelo dizer meu filho.
Cabe relevar, aqui, o entendimento de Enrique Dussel no sentido de que a criança vem ao mundo como uma tabula rasa, como defende, também, John Locke, e no processo de ensinamento, percorre todo o tempo de existência do homem na terra, não num processo de repetição ou recordação, como dissera Platão, mas de inovação, aprendizagem verdadeiramente dita, manifestando-se daí as possibilidades de se fazer ele mesmo e, portanto, outro.
Desde a Grécia Antiga até os dias atuais, os sistemas pedagógicos sempre buscaram a manutenção dos sistemas vigentes na sociedade e, mais propriamente, os sistemas dominadores. É o que se verifica ao analisarmos, por exemplo, o método maiêutico de Sócrates, em que o seu discípulo era sempre levado a concordar com o mestre, num processo em que o novo pensamento era sempre rejeitado em benefício do pensamento vigente. E, também, em Platão, segundo o qual o processo pedagógico consiste num recordar do mesmo, para que se manifeste atualmente. Na modernidade, a subjetividade admite a tabula rasa, mas se desvia para afirmar que o ensinamento constitui-se, por exemplo, no elucidar "le bon sauvage" de Rousseau e Montessori, ou no reencontro do mesmo na dialética hegeliana. Nesse processo, evidencia-se, mais uma vez, o sufocamento do ser, do outro, que acaba sendo instrumento do dominador privilegiado, e formado para servir-lhe tanto na produção como na consumação. É o esmagamento da autonomia, da liberdade e da alteridade do ser.
Defende, Enrique Dussel, que um processo pedagógico autêntico e livre deve partir de uma analética de libertação, conduzido por um mestre crítico que atue com o discípulo num serviço mútuo, movido por um amor pedagógico, em direção à liberdade e autonomia, formando um outro livre e capaz de escolher criticamente seus caminhos diante das possibilidades que se lhe apresentam no mundo.
"O autêntico mestre começa um novo processo, o caminho inverso da decadência ou da degradação inicia um caminho que destrói as ataduras da liberdade do outro e que em posição crítica o chama a recuperar a sua atitude pessoal." (Enrique Dussel,Para uma Ética da Libertação Latino-Americana, vol. I, pág.134)
Luiz Meirelles, Bacharel em Direito
Licenciado em Letras e Filosofia (Unisantos)
Mestrando em Filosofia (PUC/SP)
Presidente do Centro de Estudos Filosóficos de Santos–CEFS