Verdade: uma questão sem resposta?
Considerações sobre Alfred Tarski
Num artigo anterior, fizemos uma breve exposição da questão da verdade, enfocando o ponto de vista de Karl Popper. O assunto é, sem dúvida, um dos mais instigantes à discussão filosófica. Por isso, trazemos, desta feita, uma breve exposição do pensamento de Alfred Tarski acerca do tema.
A base deste artigo é o texto Verdade e Demonstração, de Alfred Tarski, traduzido por Jesus de Paula Assis, em que o autor traz uma discussão acerca da verdade, do ponto de vista de noção, demonstração e relação entre essas duas.
A primeira parte do artigo trata da noção de Verdade, e o autor faz, preliminarmente, um corte no sentido do termo “verdadeiro”, a fim de que fique claro que o termo é empregado restritivamente e no sentido lógico. E isto quer dizer que a questão diz respeito ao uso do termo “verdadeiro” com referência a sentenças.
Mas, mesmo tratando apenas de sentenças, o autor lembra que três são as espécies de sentenças e, por isso, faz mais uma restrição, fechando a discussão quanto às sentenças declarativas, apenas.
Tarski adota a noção de verdade preceituada por Aristóteles, qual seja:
Dizer do que é, que não é ou do que não é, que é, é falso; já dizer do que é, que é ou do que não é, que não é, é verdadeiro.
Todavia, não se restringe a ela, posto que entende ser insuficiente, vez que aquela definição, segundo o autor, não é bastante geral: ela se refere apenas a sentenças que “dizem” de alguma coisa que esta “é” ou que “não é”.[1] Logo, pretende, sim, adotá-la como ponto de partida para uma elaboração mais abrangente. Nesse sentido, traz à tona as formulações da filosofia moderna:
Uma sentença é verdadeira se denota o estado de coisas existente.
A verdade de uma sentença consiste em sua conformidade (ou correspondência) com a realidade.
Entretanto, considera-as menos claras e inequívocas que a apresentada por Aristóteles, a qual se define como concepção clássica de verdade ou concepção semântica de verdade.
Assim, diante da situação, Tarski opta pela formulação aristotélica e procura, então, um caminho que permita superá-la sem descartá-la. O primeiro passo é estabelecer em qual linguagem devem ser consideradas as sentenças sob análise. E conclui que deve ser uma linguagem específica, tomando como exemplo o inglês comum, que para nós pode ser adaptado para o português comum, conforme faz o tradutor. Esta restrição faz-se necessária, lembra Tarski, porque uma sentença significante em uma linguagem pode não o ser em outra.
Estabelecido o campo de pesquisa, se assim podemos dizer, o autor passa ao trabalho propriamente dito e escolhe uma sentença simples
“a neve é branca”
para fazer as primeiras reflexões acerca do tema.
Depois de estabelecer que “S” (assim, entre aspas) é nome da sentença e S (assim, sem aspas) é a abreviação da sentença, o autor aplica a fórmula aristotélica à referida sentença e conclui:
(1) “A neve é branca” é verdadeira se e somente se a neve é branca.
Ou
“S” é verdadeira se e somente S.
(1) “A neve é branca” é falsa se e somente se a neve não é branca.
Ou
“S” é falsa se e somente se não S.
Para essa questão, a formulação é satisfatória, vez que o conteúdo de verdade é algo exterior à sentença. E mesmo a aparência de círculo vicioso em razão de os mesmos termos aparecerem nas duas partes da definição (definiendum e definiens) não se sustenta, porquanto enquanto definiendum, “neve” é parte sintática, mas enquanto definiens, definitivamente não é parte sintática, conforme explica Tarski.
Assim, Tarski aborda uma outra questão, quando o termo “verdadeiro” aparece na sentença como parte sintática e quando não. É preciso, então, diz, estabelecer o uso adequado do termo “verdadeiro”. Isto é, adequado no sentido lógico, quando os dois lados (“S” e S) podem ser substituídos por uma sentença em português equivalente.
Se usarmos um fragmento de uma língua, podemos aplicar uma fórmula de equivalência tal que o uso do termo “verdadeiro” seja adequado, posto que, enquanto fragmento, é finito e, portanto, fechado. Entretanto, se pretendermos aplicar a uma linguagem inteira, isso se tornará impossível, pois sempre haverá uma sentença inédita e não integrada à fórmula que se pretenda adequada,e como se não bastasse, a própria Língua não estabelece critérios rígidos para definir o que é e o que não é sentença, sendo certo que um mesmo termo pode ter valor de sentença num contexto lingüístico e noutro não.
A maior problemática, contudo, Tarski levanta ao abordar as sentenças auto-referentes, ou seja, aquelas que se referem a si mesmas e não algo exterior a elas. São as sentenças que trazem em si mesmas o significante e significado, talvez possamos dizer assim.
O exemplo de Tarski é: “A SENTENÇA IMPRESSA EM VERMELHO À PAGINA 65 DO NÚMERO DE JUNHO DE 1969 DO SCIENTIFIC AMERICAN É FALSA”;que o tradutor adapta para “A SENTENÇA IMPRESSA EM MAIÚSCULAS À PÁGINA 100 DESTA TRADUÇÃO É FALSA”.
A adaptação justifica-se porquanto o fundamental do exemplo é que a sentença refira-se a ela mesma. Assim, poderíamos adaptar para “A sentença impressa em negrito neste artigo é falsa”.
A análise dessa frase leva à conclusão de que ela é falsa e verdadeira ao mesmo tempo, aplicando-se o critério de verificação clássico de adequação do uso do termo “verdadeiro”. A questão é sutil, pois a própria sentença se auto-afirma como falsa, e portanto, para que seja verdadeira, deve ser falsa. Essa situação foi formulada por Jan Lukasiewcz, lógico polonês, e configura a antinomia do mentiroso, que, segundo Tarski, vem desde a Grécia antiga, com Eubúlides.
Na seqüência, Tarski aprofunda a discussão e traz um novo exemplo da antinomia do mentiroso, mais complexo, envolvendo um livro com uma frase em cada página que confere o valor de verdadeira à frase da página seguinte até que na última página está uma frase que estabelece que a frase da primeira página é falsa.
Na discussão da antinomia do mentiroso, duas podem ser as abordagens principais, conforme ensina Tarski, exatamente opostas. Uns tratam a questão como não séria, e simplesmente a desconsideram. Outros, a consideram como fonte do progresso real. Mas o autor não foge da polêmica e pretende enfrentar o problema com o intuito de eliminá-lo positivamente, isto é, pretende revisar os princípios pré-estabelecidos para elaborá-los de forma a extinguir as antinomias.
Após rejeitar algumas teorias, Tarski resolve pelo uso da noção de verdade, porém com algumas restrições, e decide pela análise da linguagem comum que, segundo ele, é a formadora da antinomia do mentiroso por excelência. Ora, todos sabemos, essa linguagem é universal. Então, como aplicar uma formulação que de antemão vimos que não se aplicaria às linguagens universais? Tarski resolve essa questão com mais um corte. Se por um lado a linguagem comum é universal, em algumas situação ela tem objeto tão específico que o foco reduz-se a determinados aspectos que são tratados dentro de um rigor absoluto, tornando essa face da linguagem passível de análise lógica. É o caso das várias ciências. Os cientistas, ao tratarem de um assunto, preliminarmente acordam quanto ao uso dos termos para determinadas coisas, e, pois, há um fechamento do vocabulário e a noção de verdade pode ser considerada nesse contexto. Essas são, segundo Tarski, as linguagens formalizadas.
O que Tarski pretende, então, é aplicar essas linguagens formalizadas a outras ciências, também, porém sem descaracterizar estas.
Tarski faz, ainda, a distinção entre linguagem-objeto, consistente na linguagem que é o objeto da discussão e metalinguagem, consistente na linguagem na qual a definição deve ser formulada e suas implicações estudadas. Evidentemente, a metalinguagem compreende a própria linguagem-objeto, vez que é a linguagem que trata da linguagem. Daí, segue-se, portanto, consoante explica Tarski, que a metalinguagem é mais rica do que a linguagem-objeto.
Enfim, fica esclarecido que a noção de verdade será construída na metalinguagem e, pois, os princípios de lógica nela são desenvolvidos, tais como os princípios de contradição e do terceiro excluído, mas, agora, referindo-se às relações sentenciais.
O segundo ponto abordado no artigo de Traski é a questão da noção de demonstração. Todavia, assim como o terceiro – o relacionamento entre esta e a de verdade –, abordaremos num segundo momento deste artigo, na próxima edição.
Luiz Meirelles
Mestrando em Filosofia – PUC/SP
Bibliografia.
TARSKI, Alfred. Verdade e Demonstração. Trad. Jesus de Paula Assis, Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 3, v. 1, n.1, 1991. UNICAMP.
Anotações das aulas do Prof. Doutor Edélcio Gonçalves de Souza, durante o curso de Mestrado na PUC/SP – 2002.
[1] Pág.93.