Controle de constitucionalidade e democracia: uma reflexão a partir de Ronald Dworkin
1 - Considerações iniciais
O presente trabalho discute, a partir do filósofo americano Ronald Dworkin, um dos problemas mais latentes da democracia atual, a saber, o controle de constitucionalidade. Tal problema surge quando não fica bem claro, num determinado estado democrático de direito,
a quem cabe interpretar os dizeres da Lei Magna de uma nação, a saber, a constituição. Na interpretação da constituição, corre-se o risco de, intencionalmente ou não, criar novas leis e princípios para um povo. No Brasil, bem como nos Estados Unidos (país do qual o controle de constitucionalidade é analisado por Dworkin), cabe ao Supremo Tribunal Federal a decisão de declarar uma lei inconstitucional ou não, enfim, aplicar a constituição. O problema é que, às vezes, ao aplicar a constituição, a Suprema Corte, acaba por criar o direito, por criar novas leis, tarefa típica do poder legislativo. Tal idéia representa uma invasão do poder judiciário nas tarefas de outro poder. Mas isso não estaria ferindo a democracia, já que nela o povo ou a maioria do povo deveria decidir?
Os juízes da Suprema Corte americana e do Supremo Tribunal Federal brasileiro não são eleitos pelo voto do povo, mas indicado pelo representante do executivo, tendo cargo vitalício. Então, a questão principal deste trabalho é: deve a Suprema Corte ou o Supremo Tribunal Federal decidir sobre inconstitucionalidade ou respeitar a vontade da maioria, através de seus representantes legais que é o poder legislativo? Ou melhor: a quem cabe o poder de interpretar os dizeres da Constituição e como deve ser feita tal interpretação para que esta não incorra contra a democracia?
2 – Democracia (governo da maioria) versus Controle de Constitucionalidade (direito da minoria)
A constituição para Dworkin é “mãe e guardiã da democracia”[1]. Tal conceito pode parecer vago, mas entendemos que ele tem algo de fundamental importância para se entender a teoria do Controle de Constitucionalidade. Ao adotar a idéia de mãe da democracia, Dworkin parece acreditar que a Constituição é a geradora da democracia. É através dela, das garantias expressas por ela, que a Democracia torna-se possível. Nela está garantido o poder da maioria, mas também os direitos das minorias. É da Constituição que sai o fundamento para qualquer lei de um país.
Além disso, Dworkin entende que a Constituição é a norma jurídica suprema do país[2]. A Constituição americana não carrega, concretamente, a resolução para todos os problemas particulares da justiça. Ela possui uma linguagem abstrata com princípios morais abstratos que precisam ser interpretados, lidos e relidos na resolução de casos particulares do direito[3]. É nessa interpretação que surgem os grandes problemas em relação a quem deve interpretar a constituição e dizer se uma determinada lei é inconstitucional ou não.
Para o autor em questão, a Constituição não é algo parado no tempo. O mundo muda, a cultura muda e a forma como interpretamos a constituição também muda. Para o autor de Levando os direitos a sério, a constituição estabelece padrões vagos de moralidade que precisam ser interpretados e não mudados. Tais padrões são princípios que perpassam o tempo, guiando as ações da justiça, mas a interpretação destes princípios pode mudar com o tempo, como veremos na seção três deste trabalho. Para especificar isso, ele cita o exemplo da crueldade na constituição norte-americana e diz, que a suprema corte não precisa reescrever a constituição para interpretá-la, apenas criar uma teoria, chegar a uma conclusão do que eles entendem por crueldade[4].
Diante disso, ele faz uma crítica aos historicistas que acham que a Constituição deve ser sempre interpretada levando em conta as intenções de seus fundadores. Ao referir-se à Constituição americana, por exemplo, Dworkin dirá que se a interpretação desta estivesse parada no tempo, a justiça teria cometido muito mais injustiças do que cometeu e cita como exemplo a discriminação racial que quando da criação da Constituição era algo aceito e inquestionável. Para ele o historicismo forte exige que os juízes levem em conta de tal forma as intenções dos fundadores como se estas esgotassem a Constituição. “Isso equivale a negar que a Constituição expressa princípios, pois não se pode considerar que estes parem ali onde também param o tempo, a imaginação e os interesses de algum governante histórico. A Constituição leva os direitos a sério; já o mesmo não se pode dizer do historicismo”[5].
Dworkin, tanto na sua obra Levando os Direitos a Sério, quanto na obra Império do Direito, obras aqui analisadas com mais detalhes[6], reconstrói vários argumentos costumeiramente defendidos sobre o controle da constitucionalidade. Tais argumentos acabam por refletir o que poderíamos chamar uma “batalha interna” para se saber a quem cabe o dever de interpretar a Constituição declarando leis inconstitucionais ou não. Dworkin defende que cabe ao judiciário o poder de controle de constitucionalidade. Passaremos, agora, a reconstruir os argumentos que levam-no a defender tal posição.
No Brasil como nos Estados Unidos da América, o controle de constitucionalidade é feito pelo poder judiciário, abrindo campo para as mais variadas discussões. Para muitos dos críticos de tal forma de controle de constitucionalidade, deixar este na mão do Judiciário é ferir a democracia. O principal problema no controle de constitucionalidade é a idéia de que não se mantém a devida independência dos poderes com suas finalidades. No constitucionalismo democrático, cada poder tem seu papel dentro do estado e sua independência deve ser respeitada. Ao judiciário, por exemplo, cabe aplicar o direito que é criado por outros poderes como o poder legislativo. Não caberia ao judiciário, por exemplo, criar o direito, criar a lei. Na visão de Dworkin “isso é o ideal, mas por diversas razões não pode ser plenamente concretizado na prática. As leis e as regras do direito costumeiro (common law) são quase sempre vagas e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos”[7]. Diante disso, cabe ao juiz interpretar o direito estabelecido ou, até mesmo, em casos novos, a que o direito não tem nenhuma referência anterior, ele é obrigado a criar o direito. Mas tal interpretação e criação do direito pelo judiciário não estaria ferindo a democracia? Não caberia ao legislativo, representante direto do povo e da maioria da população criar o direito, já que ele, por ser eleito pelo povo, pode ser diretamente julgado pelo povo que os elegeu, enquanto que o poder judiciário, principalmente no caso da Suprema Corte, são juízes vitalícios, não sujeitos a voto?
Para Dworkin, a constituição defende além dos objetivos da maioria, os direitos das minorias e o controle de constitucionalidade se dá justamente neste ponto. A constituição protege as minorias do excesso de poder da maioria. “O constitucionalismo – a teoria segundo a qual os poderes da maioria devem ser limitados para que se protejam os direitos individuais – pode ser uma teoria política boa ou má, mas (...) não parece justo ou coerente permitir que a maioria julgue em causa própria”[8].
A partir dessa concepção, Dworkin começa a defender a idéia de que o controle de constitucionalidade deve ficar na mão do judiciário. Tanto o legislativo quanto o executivo são representantes da maioria do povo e estão sempre agindo de acordo com intenções políticas e, se não defenderem os direitos e interesses daqueles que os elegeram, correm o risco de perderem seus cargos. Então, se a interpretação da constituição ficar a cargo do legislativo, corre-se o risco de uma tirania da maioria. Para o autor em questão, então, a maioria não pode legislar em causa própria, ficando a cargo do judiciário a tarefa de interpretar os direitos das partes.
Para Dworkin, a idéia democrática de controle de constitucionalidade está fundada numa falta de atenção conceitual. A idéia democrática não leva em conta a distinção entre argumentos de política e argumentos de princípio. Na sua obra Levando os Direitos a Sério ele nos diz: “Os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo. [...] Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo”[9]. Diante desses argumentos, Dworkin não vê a necessidade de qualquer questão judiciária estar diretamente atrelada ao legislativo. O legislativo cria suas leis a partir de argumentos políticos, enquanto ao judiciário cabe guardar a constituição, a partir de argumentos de princípio que levam em conta os direitos das minorias. É claro que aqui não entramos nas questões sobre se o judiciário, na interpretação da Constituição, não acabaria por criar novas leis. Tal discussão, faremos na próxima seção.
A constituição garante ao indivíduo e às minorias direitos contra as maiorias e contra o estado. Com isso, Dworkin entende que só se justifica a interpretação da constituição ficar na mão do poder legislativo, poder democrático representante da maioria, se deixarmos de lado a idéia de que a Constituição protege a minoria contra possíveis abusos de poder da maioria. Mas parece que este argumento não é defendido nem mesmo pelos democráticos, que não abrem mão da idéia de direitos individuais. Cabe, então, ao Judiciário regular as decisões tomadas pelo legislativo, para que estas não ataquem os direitos individuais. Dworkin assume a afirmação de John Marshall, presidente da Suprema Corte Americana em 1803 quando foi julgado o caso Marbury vs. Madison: “O juiz sustentou que, como a Constituição estabelece que ela própria será a lei suprema do país, os tribunais em geral e a Suprema Corte em última instância devem ter o poder de declarar nulas as leis que violem a Constituição”[10]. E violar os direitos individuais e das minorias é violar a constituição.
É importante reforçar, nesse momento, que a constituição é a lei suprema do País. Ela acaba por regular e dar legitimidade a todas as leis futuras. Ela determina direitos e deveres fundamentais, bem como define até onde um determinado poder constituinte pode atuar. O controle de constitucionalidade surge como uma maneira de preservar a constituição, lei magna do país, e todos os direitos que ela assegura. Como sabemos, cabe ao poder legislativo criar as leis e até aqui não há problema. O problema surge quando leis são criadas com argumentos políticos de defesa do interesse geral sem levar em conta os direitos individuais e de grupos minoritários. Na visão de Dworkin, assim como um ativismo forte do poder judiciário pode levar à tirania, como veremos na seção posterior, corre-se o mesmo risco em caso de o poder da maioria (legislativo) ser o guarda de suas próprias decisões. Se admitirmos que o controle de constitucionalidade fique a cargo do poder legislativo, estaremos admitindo que a maioria é o único juiz de suas próprias decisões[11]. Estaremos admitindo, também, que as minorias não têm nenhum direito contra a maioria, já que sempre e, em todo caso, as decisões seriam da maioria.
Dworkin entende que a constituição institui direitos individuais contra o Estado e contra a maioria. Admite, também, que a maioria tem seus objetivos preservados pela mesma constituição. Diante disso, ele afirma: “O cerne de uma pretensão de direito, mesmo na análise desmitologizada dos direitos que estou utilizando, é que um indivíduo tem direito à proteção contra a maioria, mesmo à custa do interesse geral. Sem dúvida, o conforto da maioria exigirá alguma adaptação por parte das minorias, mas apenas na medida necessária para a preservação da ordem”[12]. Esta passagem retrata bem como a constituição é defensora de direitos das minorias e de interesses das maiorias.
Para Dworkin, diante dessa concepção de que há a defesa tanto das minorias quanto das maiorias na Constituição, o Poder Judiciário estaria mais apto a deferir sobre os interesses das partes, já que ele não estaria diretamente ligado a nenhuma delas e não precisaria responder eleitoralmente à maioria. O Juiz tem cargo vitalício, não é eleito e, como tal, estaria mais apto a defender os direitos das partes em questão. Já uma visão democrática, daria muita força à maioria, fazendo com que essa legislasse em causa própria.
3 – A construção do direito como forma de evitar a tirania
O grande problema na concepção de Dworkin é a possibilidade do Judiciário se tornar um poder tirânico, acabando com o poder democrático do povo. Se, por um lado, deixar o legislativo ser o juiz de suas próprias ações pode levar ao desrespeito dos direitos das minorias, poderíamos dizer que deixar o controle de constitucionalidade na mão do judiciário poderia levar ao desrespeito das decisões tomadas pela maioria. Além disso, tal poder dado aos tribunais pode diminuir a separação de poderes do estado e sua independência, fazendo com que o poder judiciário adentre em questões tipicamente legislativas. Dworkin tenta diminuir tais preocupações com uma teoria que, segundo o autor, não fere a democracia e garante os direitos da minoria.
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que a defesa de Dworkin pelo controle de constitucionalidade ficar na mão do judiciário não é pelo autor achar que este poder é infalível. A interpretação da constituição deve estar na mão do judiciário por este não ter vínculos diretos com a maioria. Para Dworkin:
Os legisladores que foram eleitos, e precisam ser reeleitos, por uma maioria política tendem mais a tomar o partido de tal maioria em qualquer discussão séria sobre os direitos de uma minoria contrária; se se opuserem com excessiva firmeza aos desejos da maioria, esta irá substituí-los por aqueles que não se opõem. Por esse motivo, os legisladores parecem menos inclinados a tomar decisões bem fundadas sobre os direitos das minorias do que as autoridades que são menos vulneráveis nesse sentido. Disso não decorre que os juízes, à margem da censura da maioria, sejam as pessoas ideais para decidir sobre esses direitos. Os juízes têm seus próprios interesses ideológicos e pessoais no resultado dos casos, e também podem ser tirânicos[13].
Os juízes são pessoas que carregam com eles interesses, têm suas próprias convicções e sua moralidade. Mas, a possível vantagem que carregam é de não serem pessoas eleitas pelo povo e, por isso, não terem de responder diretamente pelos seus atos à população.
Dworkin condena a idéia de que os juízes ajam por causa própria ou sem levar em conta a constituição, assim como condena a idéia de que o poder judiciário deve tomar suas decisões, levando em conta sempre decisões anteriores do legislativo. Diante disso, ele defende a idéia de um direito como integridade que leva em conta uma idéia de construção do direito a partir de princípios.
Os juízes não devem impor seus próprios pontos de vistas os outros poderes do Estado. Para ele: “O direito como integridade condena o ativismo e qualquer prática de jurisdição constitucional que lhe esteja próxima. Insiste em que os juízes apliquem a Constituição por meio da interpretação, e não por fiat, querendo com isso dizer que suas decisões devem ajustar-se à prática constitucional, e não ignorá-la”[14]. Para ele, a aplicação da constituição deve ser construída a partir de uma interpretação refinada do texto da constituição e dos princípios que regem a conduta moral. Não cabe ao judiciário nem submeter-se passivamente às decisões da maioria representada no legislativo, nem impor suas próprias convicções. No primeiro caso seria omissão e no segundo tirania.
A constituição não é um número de leis concretas aplicados caso a caso, como vimos no início deste trabalho, mas precisa ser interpretada toda vez que uma lei para casos específicos está sendo criada ou aplicada. Para que o judiciários não fira a democracia, ele precisa ter um bom método para lançar mão de seu julgamento. O juiz, para Dworkin, não deve impor seus próprios ideais e convicções na interpretação da Constituição nem deve submeter-se, passivamente, às decisões de outros poderes. Mas, deve construir, a partir de princípios, sua interpretação da constituição. Para ele, o direito é guiado por princípios morais que entram no direito positivados.
Então, quando o juiz age, ele não age a partir de suas convicções pessoais, mas a partir de conceitos morais. Para ele, quando um juiz age, recorre, por exemplo, ao conceito de justiça presente na constituição e não à sua convicção pessoal de justiça. O conceito é mais geral e não leva em conta somente o que eu penso sobre tal conceito. O juiz adota o conceito de justiça e age a partir dele, não deixando de lado a constituição. Tal conceito de justiça é um princípio estabelecido, geral, um padrão de justiça que perpassa todas as ações dos juízes e das pessoas comuns. Tais conceitos morais não são concepções particulares, mas padrões criados pelos fundadores da constituição. É a partir destes padrões que são criadas as concepções pessoais de justiça, por exemplo. Então, no caso da interpretação da constituição, o juiz não age como quer, mas sim guiado por um conceito de justiça, um padrão determinado na constituição e cria uma teoria sobre tal padrão, para, a partir de então, agir. Para Dworkin “o homem que, desse modo, recorre ao conceito pode ter sua própria concepção de justiça [...] mas para ele essa concepção é vista apenas como sua teoria de como o padrão que ele estabeleceu deve ser satisfeito. Assim, quando ele muda sua teoria, ele não muda esse padrão”[15]. O direito é sempre construído a partir de um padrão de moralidade (princípio) que entra no direito positivado. Há um padrão de justiça, um conceito que é adotado e que sempre, e em todo caso, o juiz age a partir desse padrão. Suas concepções pessoais destes padrões são construções que o juiz faz e ele pode mudar suas concepções, mas não muda o princípio estabelecido. O direito, então, é construído, a cada momento, na análise de casos particulares, a partir de princípios positivados. Mudam-se as concepções e as regras, mas os padrões não são mudados[16].
O judiciário, trabalha no que Dworkin chama esfera dos direitos, com argumentos de princípios que decidem sobre direitos e não sobre objetivos políticos e sociais. Tais princípios são positivados e guiam as regras particulares. Então, o juiz sempre será guiado por seus princípios e não por regras. O juiz precisa ser coerente com a gama de princípios que adotou. “Coerência aqui significa, por certo, coerência na aplicação do princípio que se tomou por base, e não apenas na aplicação da regra específica anunciada em nome deste princípio”[17].
A interpretação da constituição também obedece a este esquema de princípios e vai ser sempre construída através deles. Cabe ao juiz, através da análise da lei escrita, da moral vigente, da história e de muitos outros aspectos construir sua teoria do direito, e, a partir daí, aplicar a sua interpretação da constituição. O juiz considera todos os aspectos, os prós e contras de cada modo de defesa constitucional, age a partir de princípios que garantem direitos, às vezes, precisa levar em conta suas concepções pessoais, mas faz isso com todo o cuidado e só age a partir delas quando por princípios morais. Para Dworkin, portanto, o juiz é alguém ativo que constrói uma interpretação da lei, a partir dos padrões estabelecidos por ela. Mas como fazer isso sem incorrer em tirania contra a democracia? O próprio Dworkin nos responde:
Um julgamento interpretativo envolve a moral política (...)Mas põe em prática não apenas a justiça, mas a variedade de virtudes políticas que às vezes entram em conflito e questionam umas às outras. Uma delas é a eqüidade: o direito como integridade é sensível às tradições e à cultura política de uma nação, e, portanto, também a uma concepção de eqüidade que convém a uma Constituição. A alternativa ao passivismo não é um ativismo tosco, atrelado apenas ao senso de justiça de um juiz, mas um julgamento muito mais apurado e discriminatório, caso por caso, que dá lugar a muitas virtudes políticas mas, ao contrário tanto do ativismo quanto do passivismo, não cede espaço à tirania[18].
Para Dworkin, esta idéia construtiva do direito faz com que se leve em conta todos os aspectos em questão numa possível decisão, sem ferir os princípios constitucionais. Tais aspectos são desde aspectos políticos, até de moralidade cotidiana, passando pela história das decisões anteriores, pela defesa dos direitos das minorias e pelas próprias convicções do juiz, sem, porém, prender-se unicamente a nenhuma delas, mas, ao contrário, interpretando eqüitativamente, construindo o direito com integridade, a partir de princípios morais. Para melhor especificar sua teoria, Dworkin cria a figura do juiz Hércules, que tem capacidades sobre-humanas de construir um direito como integridade.
O juiz Hércules é a figura criada por Dworkin para ilustrar sua teoria. Ele é um juiz filósofo, com capacidades sobre-humanas que consegue avaliar todas as partes em questão, compreender as teorias em jogo, os princípios em conflito, as intenções legislativas e criar uma teoria do direito coerente com a integridade. Mas vamos à descrição que o próprio Dworkin dá de seu juiz semi-divino. Na obra Levando os direitos a sério, ele descreve Hércules da seguinte maneira:
eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules. Eu suponho que Hércules seja um juiz de alguma jurisdição norte-americana representativa. Considero que ele aceita as principais regras controversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras palavras, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores cujo fundamento racional (rationale), como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo[19].
Na obra Império do Direito, o juiz Hércules é promovido à Suprema Corte dos Estados Unidos[20]. Nessa obra, Dworkin mostra claramente como Hércules deve trabalhar na interpretação da constituição.
Hércules, não é um juiz que diz sim a todas as decisões do legislativo, como se essas fossem sempre certas por serem vontade da maioria, contudo, não é um ativista irresponsável que leva em conta somente as suas convicções. Para Dworkin,
Hércules tem seu jeito de lidar com as leis. Interpreta cada uma delas de modo a, considerados todos os aspectos, fazer seu histórico chegar ao melhor resultado possível. Isso exige julgamentos políticos, mas estes são especiais e complexos e, de modo algum, iguais aos que faria se estivesse votando uma lei a respeito dos mesmos problemas. Suas convicções sobre a justiça ou a política sábia se vêem inibidas em seu julgamento interpretativo geral, não apenas pelo texto da lei, mas também por um grande número de considerações sobre a eqüidade e a integridade[21].
Hércules é, então, a personificação da teoria do direito de Dworkin, pois é capaz de agir com integridade, construindo uma interpretação da lei, ponderando vários aspectos e não se prendendo a nenhum em especial. A história, o legislativo, a maioria, a minoria, as teorias políticas, as convicções próprias, a moral vigente, tudo é ponderado por esse super juiz. A partir dessas ponderações, ele constrói uma teoria da constituição e passa a agir a partir dela. É preciso lembrar aqui, que tal teoria não é um padrão de justiça, mas uma concepção sobre tal padrão.
Como vimos, Hércules é um juiz filósofo, que não simplesmente aplica o direito, mas que o interpreta. Hércules, para Dworkin,
deve desenvolver uma teoria da constituição na forma de um conjunto complexo de princípios e políticas que justifiquem o sistema de governo. (...) Hércules deve desenvolver essa teoria referindo-se alternadamente à filosofia política e ao pormenor institucional. Deve gerar teorias possíveis que justifiquem diferentes aspectos do sistema, e testá-las, contrastando-as com a estrutura institucional mais ampla. Quando o poder de discriminação desse teste estiver exaurido, ele deverá elaborar os conceitos contestados que a teoria exitosa utiliza[22].
Na verdade, o que Hércules precisa fazer é criar uma teoria constitucional e pesá-la com outras possíveis, avaliando com isso, o poder de sua teoria. Mas na elaboração dela, Hércules não deve levar em conta somente convicções pessoais, mas como vimos acima, uma gama enorme de aspectos que fazem com que ele sempre aplique a lei com integridade e eqüidade. Assim, podemos perceber mais claramente que Hércules é um juiz filósofo, que cria uma teoria, avaliando criticamente cada um de seus aspectos.
A constituição é especial, é ela que serve de fundamento para a criação de todas as leis, segundo Dworkin. E, na tese de Hércules, os juízes têm a obrigação de fazer cumprir os direitos constitucionais. Então, é preciso lembrar que uma interpretação da constituição deve ser também fundamental. Tal interpretação “deve ajustar-se às disposições mais básicas do poder político da comunidade e ser capaz de justificá-las, o que significa que deve ser uma justificativa extraída dos aspectos mais filosóficos da teoria política”[23].
Hércules, dessa forma, não é um simples juiz que defende uma teoria unilateralista, que não pondera sobre os problemas vigentes de uma teoria. Ao contrário, ele guia-se por um senso de integridade constitucional, ele leva em conta o próprio texto da constituição, mas quando este não fornece diretrizes claras, faz sua interpretação das possíveis novas leis com equidade, sabedoria e discernimento, para que estas não firam os padrões constitucionais. Mas suas ações, às vezes, podem extrapolar os limites do poder judiciário e invadir papéis tipicamente de outros poderes como o legislativo e o executivo. Para Dworkin, “de acordo com o direito como integridade, porém, essa inusitada intrusão judicial nas funções administrativas é apenas a conseqüência, em circunstâncias extremamente especiais e conturbadas, de uma visão perfeitamente tradicional do cargo de juiz”[24]. O poder judiciário tem o papel de guardar a democracia, fazendo cumprir os direitos constitucionais e, segundo, Dworkin, o judiciário só invade outros poderes quando é necessário que se faça cumprir a Constituição.
A figura de Hércules, de Dworkin, tenta mostrar que sua teoria construtivista do direito não é usurpadora dos direitos democráticos. Na construção do direito, sempre é levado em conta os princípios morais que guiam a teoria. O juiz não cria sua interpretação da constituição, rejeitando esta, mas a interpreta a partir do texto da constituição. Como o juiz Hércules leva em conta todas as partes em questão, analisando caso a caso os direitos que cabem a cada um, formulando uma teoria discernida da constituição e da democracia, ele não é um tirano. Para Dworkin, então, “Hércules não é um tirano usurpador que tenta enganar o povo, privando-o de seu poder democrático. Quando intervém no processo de governo, ele o faz a serviço de seu julgamento mais consciencioso sobre o que é, de fato, a democracia e sobre o que a Constituição, mãe e guardiã da democracia, realmente quer dizer”[25].
Apresentamos até aqui a teoria de Dworkin, cabe-nos agora fazermos algumas considerações breves sobre o assunto.
Considerações finais
Dworkin nos apresenta uma teoria de controle de constitucionalidade que defende a idéia deste controle estar na mão do judiciário. O grande problema, como vimos, é que este poder não é eleito pela maioria democrática. Dworkin, porém, deixa bem claro que o constitucionalismo garante direitos tanto à maioria, quanto às minorias. Na constituição, há direitos do estado, mas há direitos individuais que precisam ser levados em conta. Para ele, então, o judiciário é o poder que pode agir com maior precisão na interpretação e aplicação da constituição, por não estar ligado às maiorias.
Dworkin, inverte o argumento da representação democrática, jogando a idéia de representação da maioria como um dos motivos para que o controle de constitucionalidade não fique na mão de poderes eleitos pelo voto, pois estes defendem interesses de grupos da maioria que podem acabar por impor sua própria vontade, sem respeitar os direitos da minoria. O poder judiciário ao contrário, ao menos teoricamente, é mais capaz de perceber os direitos das partes.
O grande problema da teoria de Dworkin, ao que parece, está no âmbito da independência dos poderes. A construção do direito parece ferir tal independência, pois o judiciário mais do que aplicar a lei, ao interpretar a constituição, muitas vezes, acaba por criar leis, tarefa própria do legislativo. Assim, a teoria de tal autor parece ferir o próprio constitucionalismo que garante a independência dos poderes. Por outro lado, deixar o controle de constitucionalidade na mão do legislativo é, como bem diz Dworkin, deixar a maioria ser juíza de suas próprias ações. Assim, a teoria de Dworkin não parece ter solucionado por completo o problema do controle de constitucionalidade, mas, somente lançado algumas luzes sobre ele.
Marciano Adilio Spica
Doutorando na área de Ética e Filosofia Política do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
BIBLIOGRAFIA
BARROSO, L. R. Dez anos da Constituição de 1998 (foi bom pra você?).In.: “A Constituição Democrática Brasileira e o Poder Judiciário”. Série Debates nº 20. São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1999. p. 21 - 49.
DWORKIN, R. El dominio de la vida: una discusión acerca del aborto, la eutanasia y la libertad individual. Barcelona: Ariel, 1998.
DWORKIN, R. Levando os direitos a sério; trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DWORKIN, R. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ROCHA, C. L. A. Os dez anos da Constituição Federal, o Poder Judiciário e a construção da Democracia no Brasil. In.: “A Constituição Democrática Brasileira e o Poder Judiciário”. Série Debates nº 20. São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1999. p. 3-21.
[1]DWORKIN, R. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.p. 476. Doravante citado ID.
[2] ID, p. 426.
[3] Para Dworkin os redatores da Constituição Americana escolheram uma linguagem de padrões vagos, ao invés de um número de regras particulares e específicas. “Contudo, sua decisão de usar a linguagem que usaram causou muita controvérsia política e jurídica, porque mesmo homens razoáveis, dotados de boa vontade, discordam quando tentam especificar, por exemplo, os direitos morais que a cláusula de processo legal justo ou a de igual proteção introduzem no direito”. DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. doravante citado LDS.
[4] LDS, p. 214.
[5] ID, 441.
[6] Além dessas obras que analisamos com mais detalhes, também usamos como subsídio a obra El Domínio de la vida, do mesmo autor.
[7] LDS, p.128.
[8] LDS, p. 223.
[9] LDS, p.
[10] LDS, p. 223.
[11] LDS, p. 225.
[12] LDS, 230.
[13] ID, p. 449.
[14] ID, p. 449.
[15] LDS, p. 212.
[16] Para melhor especificar tal idéia, Dworkin utiliza o exemplo de um padrão comportamental que ele, supostamente, dá a seus filhos. Vejamos: “Suponhamos que eu dissesse a meus filhos que esperava que eles não tratassem os outros injustamente. Sem dúvida, eu teria em mente exemplos da conduta que desejaria desencorajar, mas não aceitaria que meu ‘significado’ se limitasse a esses exemplos, por duas razões. Em primeiro lugar, eu esperaria que meus filhos aplicassem minhas instruções a situações nas quais eu não teria pensado nem poderia ter pensado. Em segundo lugar, eu estaria pronto a admitir que algum ato particular que eu considerara justo (fair) era de fato injusto, ou vice-versa, caso um dos meus filhos conseguisse me convencer disso posteriormente. Nesse caso, eu gostaria de dizer que minhas instruções incluíam o caso por ele citado, e não que eu mudaria minhas instruções. Eu poderia dizer que minha intenção era a de que a família se guiasse pelo conceito de justiça (fairness) e não por alguma concepção particular de justiça (fairness) que eu tivesse tido em mente.” LDS, p. 211.
[17] LDS, p. 139.
[18] ID, p. 452.
[19] LDS, p. 165.
[20] ID, p. 453.
[21] ID, p. 454.
[22] LDS, p. 168.
[23] ID, p. 454.
[24] ID, p. 467.
[25] ID, p. 476.