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O SEGUNDO PROBLEMA DIALÉTICO DE TEMOR E TREMOR: HÁ UM DEVER ABSOLUTO PARA COM DEUS?

 José Chadan - Mestre em Filosofia PUCSP 

            Antes de iniciar propriamente esta comunicação é preciso dizer de que se trata. Trata-se de uma investigação acerca do segundo problema dialético exposto na obra Temor e Tremor, de Sören Kierkegaard[1].  Contudo, tal obra não teria sido escrita por Kierkegaard, e sim, por Johannes de Silentio, um pseudônimo que Kierkegaard utiliza em outras de suas obras também.

Segundo Álvaro Valls, Johannes se autodenomina um “poeta da fé”. Johannes almejando fazer um elogio da fé usa como mote o episódio de Abraão no livro de Gênesis, quando Deus ordena que sacrifique Isaque (Cf. VALLS, 2000 p. 182).

No referido episódio, Deus e a ordem do sacrifício representam o absoluto, ao passo que o dever de pai de Abraão para com Isaque se expressa segundo os modos do estádio ético (o geral) [2].  Em relação ao segundo problema dialético de Temor e Tremor, poderíamos nos perguntar: um indivíduo poderia passar por cima da ética, das normas estabelecidas pelo geral, a fim de obedecer a um dever maior para com o absoluto, mesmo quando este dever fere o geral?  Qual dos estádios[3] estaria sobreposto ao outro? O estádio ético estaria sobreposto ao religioso ou o inverso? Abraão deveria obedecer à ordem dada pelo Absoluto[4], sacrificando seu filho ou, à norma geral, amando seu filho e preservando-lhe a vida?

            No decorrer do texto escrito por Kierkegaard, notamos que este coloca o Absoluto acima do geral. O indivíduo teria, portanto, um dever absoluto para com Deus.  Contudo, surge aqui um novo problema, qual seja: o de que o dever pertence à categoria do geral e não à categoria do Absoluto.

O Absoluto ou o estádio religioso é representado nas esferas dos estádios kierkegaardianos, pelo elemento do paradoxo. Talvez devêssemos com juízo crítico, cogitar se o título do referido capítulo não estaria posto em termos inadequados ou se o autor o fez propositalmente, a fim de mostrar que não se pode juntar “dever” com “Absoluto”, já que são elementos de estádios diferentes.

Seria mais correto perguntar, então: haveria um dever para com o geral? Haveria um paradoxo para com o Absoluto?

E, nestes termos, talvez a pergunta se fizesse mais coerente levando em conta os estádios e terminologia kierkegaardianas. Mas deixemos isto de lado, colocando-nos humildemente em nosso lugar, ao invés de questionar o modus scriptum deste importante pensador.

            O estádio ético ou o geral se relaciona com o herói trágico, que renunciando seu dever para com o absoluto, opta por seguir a norma geral, o consenso, perdendo a chance de caminhar solitariamente; podendo vir algum dia, a tornar-se o que de melhor pode vir a ser, na qualidade de indivíduo. Este ápice só seria alcançado pelo cavaleiro da fé, que renunciando o geral escolheu o Absoluto. Caminhando solitariamente, dando um salto no escuro e podendo tornar-se o melhor que pode na qualidade de indivíduo.

            O herói trágico opta pela segurança oferecida ao unir-se ao geral, sendo compreendido por todos os demais homens que também se encontram no estádio ético no caminho da vida. O cavaleiro da fé por sua vez, toma o caminho mais difícil, o caminho que lhe traz angustia, solidão, incompreensão e paradoxo; categorias estas, que fazem parte daqueles que, rejeitando o geral, abraçaram seu dever absoluto para com o Absoluto (Deus).

            Outrossim, o cavaleiro da fé se sacrifica pelo geral, a fim de, através de sua escolha pelo absoluto, lançar luz sobre o geral, dando-lhe então (ao geral), a chance de compreender novas formas de agir e novos estádios de vida.  Entretanto, o mais provável, é que o geral – pautado pela racionalidade – nunca venha a compreender o cavaleiro da fé e nem o que ele vem a ensinar, e o chame de louco.

Isto por que o geral se pauta pelo exterior, enquanto que o indivíduo que optou por trilhar a vida como um cavaleiro da fé, se pauta pelo “interior do interior”, ou melhor dizendo: se pauta por um interior dentro de seu próprio interior. Uma espécie de interioridade que se desdobra em si mesma, ou seja, uma espécie de segunda interioridade.

A primeira interioridade, se assim podemos chamar, é a introjeção pessoal que cada um faz da ética (do geral) que lhe é exterior. Já a segunda interioridade, ou o “interior dentro do próprio interior”, como aqui o chamamos, seria um salto para além da primeira interioridade (ainda racional e reflexiva), para uma segunda interioridade (fundada na fé e no paradoxo, tal como representada por Abraão).

            Ilustrando o estádio ético, do herói trágico, Kierkegaard lança mão de duas personagens: O famoso capitão romano conhecido por Cunctator que pôde conter o inimigo e salvar o Estado e Agamenon que renunciando Ifigênia, encontrou repouso no geral e então pôde – com o consentimento do geral – sacrificá-la. 

O herói trágico sacrifica a própria individualidade pelo geral, para “fundir-se” no geral, mas seu sacrifício não exige muito já que é compreendido e até mesmo admirado por todos. A substância, ou o elemento principal da ética é fundamentalmente a expressão de um indivíduo através do geral (Cf. GIMENES, 2001, p 124).

            Para ilustrar o estádio religioso do cavaleiro da fé – o paradoxo – Kierkegaard lança mão primeiramente do episódio bíblico de Abraão e depois, do episódio narrado no Evangelho de Lucas (14, 26), onde a narrativa afirma que Jesus teria dito que se alguém deseja segui-lo, deve aborrecer seu pai e sua mãe (o geral). Ou dito de outro modo: quem não se dispõe a aborrecer, ir na contramão do geral, não pode seguir a Jesus.

Em um sentido mais rigoroso, o cavaleiro da fé se sacrifica pelo geral, expondo-se à total incompreensão e até ao desprezo (por parte do mesmo). O cavaleiro da fé sacrifica o geral para então, tornar-se um indivíduo. A substância, ou o elemento principal do estádio religioso seria, portanto e fundamentalmente, o silêncio (Cf. GIMENES, 2001, p. 124).

            O dever absoluto de um indivíduo para com Deus consiste a rigor, em paradoxo e caracteriza o estádio religioso no caminho da vida.  No instante em que Abraão vai sacrificar Isaque, a moral o acusa de odiar o próprio filho. A moral (o geral) não o compreende e o condena segundo as normas e valores estabelecidos pela razão. Para o geral, Abraão seria, portanto, um assassino.

            No geral, a relação do indivíduo com Deus é pois, mediada pela moral, pelos costumes; ao passo que no paradoxo, não há mediação alguma, sendo a relação indivíduo-Absoluto, imediata (sem mediação, sem mediador).

O herói trágico já fez seu caminho, descansando no geral. O cavaleiro da fé ao contrário, está sempre sendo posto à prova e sendo por causa disto, tentado a dar um passo atrás, a fim de descansar e adequar-se ao conforto proporcionado pelo geral. Porém se o fizer, perderá para sempre a chance de tornar-se um indivíduo.

            Segundo Ricardo Q. Gouvêa em seu livro A Palavra e o Silêncio no capitulo décimo, Kierkegaard, ao propor o segundo problema dialético, estaria fazendo oposição à teologias como a de Tomás de Aquino, Kant e Hegel, segundo as quais o telos está sempre dentro do plano ético, e até mesmo Deus está dentro do plano ético. Tudo o mais estaria fora e ele – o  plano ético – tudo mais nortearia. Uma espécie de supervalorização da racionalidade, elemento central de todo e qualquer plano ético (Cf. GOUVÊA, 2002, p. 243-244).

            Toda forma de sistematização ética culmina, portanto, em um dever. Dever este que, “sugando” Deus para dentro do sistema ético estabelecido, acabaria por eliminá-lO ou levar o homem à idolatria, já que até mesmo Deus se tornaria sujeito a algo que lhe seria superior, isto é, o próprio Sistema Ético.

            O que Kierkegaard está propondo no segundo problema dialético de Temor e Tremor não é a eliminação total do elemento ético, mas a ética reincorporada à esfera religiosa, sob uma nova e mais completa forma: não mais estritamente racionalista, sujeitando-se aos ditames sociais ou estatais, mas uma ética que conteria em si o elemento de interioridade capaz de conferir ao indivíduo, maior autonomia e autenticidade.

            Kierkegaard está tentando apontar para o fato de que o exterior ou a razão, tropeça em enganos e erros, deixando-se muitas vezes guiar-se por pressupostos que a sugestionam, desviam do rumo etc. E, para não perder-se nestas ciladas, a razão precisa reconhecer seus próprios limites, dando lugar à fé e ao paradoxo. Estes sim, reassumindo a razão sob uma nova forma. Agora redimida de sua pretensa autonomia e soberania, ela, a razão, andaria lado a lado com a fé, deixando o indivíduo numa relação direta e imediata para com Deus.

            Um indivíduo, portanto, quando tomado em sua singularidade, está a sós diante de Deus e de seu dever para com Ele. Não podendo ser julgado, para o bem ou para o mal, pela sociedade. O que só poderia ocorrer quando tal indivíduo fosse considerado com a sociedade. Ou se toma o individuo isoladamente e neste caso, ele está verticalmente a sós em seu dever para com Deus, ou se toma o individuo dentro da sociedade, e neste caso, ele está junto com todos, que estão igualmente sujeitos ao geral.

O dever para com o geral seria assim, cumprido mediante o uso das faculdades racionais, que estabeleceriam o que é certo e o que é errado. Já o dever do indivíduo para com Deus – ilustrado no episódio de Abraão, o cavaleiro da fé – seria cumprido mediante a renuncia da razão, que se percebe limitada e o abraçar da fé. Por meio do paradoxo.

Haveria sim, um dever absoluto para com Deus. No entanto, o fato de tal dever não passar pelo geral, não quer dizer que o geral esteja destituído de valor. Quer dizer antes, que o pensador dinamarquês pretendeu elucidar um novo modo de viver a fé, segundo a qual o maior exemplo é Abraão. Segundo o qual a fé não provém do exterior (da sociedade, do Estado, da igreja, nem mesmo da primeira forma de interioridade de um indivíduo). Ao contrário, a fé advém de uma forma mais profunda de interioridade que um indivíduo pode assumir: de uma segunda interioridade ou como diz Gouvêa, de uma interioridade duplamente refletida (Cf. GOUVÊA, 2002, p. 247).

            Nesta segunda forma de interioridade, o indivíduo não se encontra junto aos outros, horizontalmente (geral), mas se encontra sozinho diante de Deus (verticalmente). A voz para a ação, portanto, advém desta relação única entre o indivíduo e Deus (o Absoluto), que proporcionaria ao indivíduo uma segunda interioridade.

Numa escala digamos,... “para dentro”, para o estádio religioso, para “o paradoxo”, o individuo caminharia primeiro pela exterioridade (pelo geral), passando em seguida para a primeira forma de interioridade (para a introjeção pessoal das normas éticas) e, finalmente, para a segunda forma de interioridade (que age baseada na relação única e singular de um individuo frente ao Absoluto).

            Retornando ao problema de Abraão, diríamos que ele, Abraão, renunciou o geral (o exterior). Depois renunciou as normas gerais que haviam sido introjetadas em sua primeira interioridade, para só então alcançar a relação autentica que pode existir entre individuo e Deus, que se dá somente por meio daquela segunda interioridade – a “interioridade duplicada”. E, ainda sobre esta segunda interioridade, Gimenes de Paula afirma de que Abraão possuiria uma espécie do que ele chama, interior oculto (Cf. GIMENES, 2001, p . 123).

            Apesar de não se poder em tese, compreender o cavaleiro da fé por meio da racionalidade (do geral), contudo, Johannes de Silentio afirma de que em certo sentido é possível compreender Abraão. Johannes diz quase no final da obra, um pouco antes de iniciar o epílogo:

Ainda aqui se vê que Abraão pode ser compreendido, mas somente como se compreende o paradoxo. Sou capaz, pela minha parte, de entender Abraão, vejo porém, ao mesmo tempo, que não possuo a coragem de falar, e ainda menos de agir como ele; contudo, de forma alguma quero exprimir, com isto, que a sua conduta seja medíocre, quando, pelo contrário, é o único prodígio (KIERKEGAARD. Temor e Tremor, p. 302).

O dito derradeiro de Johannes pode ser interpretado como a necessidade de cessar toda e qualquer forma de linguagem discursiva ou conceitual quando se está diante do dever absoluto para com Deus, qual seja: o paradoxo da fé - o paradoxo expresso no episódio de Abraão e nunca passível de ser expresso em palavras.

Cumprir o dever absoluto para com o Absoluto, é renunciar o geral (a razão), abraçando em contrapartida a fé e o paradoxo. Caminhando solitária e silenciosamente. Cumprindo o dever absoluto que ninguém mais pode compreender, nem auxiliar no caminhar. Estando a sós: o individuo, Deus e o dever daquele para com Este.

Terminamos assim a presente comunicação sobre o segundo problema dialético em Temor e Tremor intitulado: Há um dever absoluto para com Deus?.

           

            Bibliografia

            GIMENES DE PAULA, Marcio. Socratismo e Cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001.

            GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Palavra e o Silêncio. São Paulo: Editora Custom, 2002.

KIERKEGAARD, Sören. Kierkegaard. Col. Os Pensadores. Trad. Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casai Monteiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979.  In: <http://leandromarshall.files.wordpress.com/2012/05/kierkegaard-dic3a1rio-de-um-sedutor-temor-e-tremor-o-desespero-humano1.pdf>

            VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. Entre Sócrates e Cristo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

 

 

[1] Este trabalho trata-se de uma comunicação feita pelo autor  em 2002 na Fundação Escola de Política e Sociologia de São Paulo, que fez parte de uma série de comunicações feitas por outros palestrantes  membros da SOBRESKI  (Sociedade Brasileira de Estudos Kierkegaardianos).  E, por se tratar de um trabalho antigo, o autor achou por bem, revisá-lo e reformulá-lo para a presente edição. Evitando fazer referências aos textos consultados, por uma questão de fluência, exceto quando estritamente necessário. 

O texto utilizado na comunicação original foi “Temor e Tremor” da Ediouro, com tradução e prefácio de Torrieri Guimarães. Porém ao revisar o artigo, utilizei o livro digital “Kierkegaard”, da coleção Os Pensadores, publicada pela Abril Cultural e cujo endereço eletrônico encontra-se na bibliografia deste trabalho.

[2] Geral é uma categoria usada por Kierkegaard para falar daquilo que é aceito por todos como certo, adequado. O geral, portanto, tem relação direta com os conceitos de dever, sociedade e repetição. É o bom marido, que cumpre seus trabalhos cotidianos e regressa ao lar; é a esposa dedicada que cuida da casa e dos filhos, repetindo seu trabalho todos os dia; são os filhos que vão a escola e repetem seus deveres todos os dias.

[3] Há duas maneiras utilizadas pelos estudiosos para tratar das esferas kierkegaardianas no caminho da vida. Alguns optam por chamá-las “estágios”, compreendendo que um estágio supera outro estágio, enquanto outros optam por chamá-las estádios, compreendendo que um estádio está dentro do outro estádio e que não haveria superioridade necessária entre um e outro. Os estágios ou estádios são: estágio estético (prazer, sensualidade), estágio ético (dever, repetição) e estágio religioso (fé, paradoxo). Cada estágio compreende assim, um modo de viver, um jeito de existir. Abraão estaria, portanto, numa tensão dialética entre o estágio ético-religioso: ético, pois ele precisa suspender o geral, e religioso, porque ele atende o chamado paradoxal de Deus que, tendo feito uma promessa à descendência de Isaque, o pede em sacrifício.

[4] Absoluto é um conceito usado por Kierkegaard para referir-se a Deus. Deus é o Absoluto. Na filosofia kierkegaardiana, o Absoluto se contrapõe ao geral, pois ou o indivíduo escolhe obedecer ao geral, isto é, à sociedade e suas normas geralmente aceitas ou, escolhe obedecer o Absoluto, que como no caso de Abraão, ordenou-lhe algo que o mesmo não podia confiar ao geral – Sara, Eliezer e Isaque. Quem prefere o Absoluto ao geral será com certeza incompreendido. Tal como Noé ao construir a arca (embora em nenhuma parte Kierkegaard o mencione e eu só o tenha usado a título de exemplo).

Vale dizer que no início, escrevi Absoluto com letra capitular, para assim dar destaque, já que trata-se de Deus. Conforme o texto foi avançando e o leitor já teve tempo de perceber ao que o termo se refere, optei por deixar a palavra em letras minúsculas a fim de dar fluidez a leitura.