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Agostinho e Kierkegaard:  arbítrio e liberdade

Paulo Ricardo Gomides Abe
Doutorando em Filosofia - USP

Neste artigo, procuraremos analisar o conceito de livre arbítrio e liberdade em Agostinho e Kierkegaard, atentando para como chegam a uma possível mesma conclusão quanto às tendências negativas de seus conceitos. Para tanto, tomaremos o livro Livre arbítrio de Agostinho e algumas obras de Kierkegaard que abordam o assunto.


Na primeira seção, discutiremos Agostinho e a questão do bem ser algo aprendido e o mal ser obra da vontade, assim como as consequências dessas afirmações. O filósofo se perguntará qual o papel da paixão na ação má – em detrimento da razão. A partir daí, discorremos sobre como o livre arbítrio pode ser um bem, diante da responsabilidade ligada a ele e da presciência de Deus.
Na segunda seção, abordaremos como Kierkegaard define o que é o si-mesmo e como alcançá-lo, nomeando-o também de liberdade. Em A doença para a morte, descreve que a vontade está em proporção com o si-mesmo e discute, ao menos em sua obra Ou-ou, qual o papel da escolha e do livre arbítrio nesta equação. Posteriormente, abordaremos brevemente a questão sociocultural do status quo contra esta liberdade e compararemos o ponto de vista de Kierkegaard à contraluz de Agostinho.

O mal não é ensinado: Agostinho

Logo no início de Livre arbítrio, Agostinho apresenta uma ideia central que afirma que tudo o que é aprendido decorre do que é bom. O mal é algo que não pode ser aprendido, mas justamente vem do distanciamento dos aprendizados, não é algo bom. Neste ponto, parece repetir a questão socrática segundo a qual se conheço o bem não pratico o mal. De modo que não há mestres maus. É uma contradição.
O mal está ligado, de certa forma, ao distanciamento de Deus, pois ele é bom. Ele não está em ações exteriores, mas no interior, podendo ser expressado exteriormente. Este mal é necessariamente obra da vontade humana, ainda que o livre arbítrio possa ser direcionado para o bem. De fato, ele foi concebido com este objetivo – ser a expressão máxima do uso livre, da vontade humana –, porém, frequentemente, cede ao objetivo oposto, realizando o mal.
Agostinho se pergunta como isso pode acontecer. Se tudo que vem de Deus é bom, como o livre arbítrio, que foi dado por Deus, ou mesmo o homem pode ser a via para o mal? Para Agostinho, a paixão é o que move as más ações: “Com efeito, é claro que em todas as espécies de ações más é a paixão que domina na alma do homem” (AGOSTINHO, 2001, I, 3, 8). É algo interior que corrompe o livre arbítrio. Contudo, a paixão é algo pessoal. Ou seja, faz parte do indivíduo que ainda precisa usar sua livre determinação para aceitá-la ou não. É ao ceder, voluntariamente, a ela que nos distanciamos do agir retamente.
A alma humana, para Agostinho, é composta de dois elementos básicos: a paixão e a razão. Quando o ser humano se encontra dominado pela paixão, encontra-se desordenado, pois ela é o elemento inferior. De maneira que “[...] quando este elemento superior [a razão] domina no homem e comanda a todos os outros elementos que o constituem, ele encontra-se perfeitamente ordenado” (AGOSTINHO, 2001,I, 8, 18).
No referido livro, a discussão se detém neste aparente paradoxo: por que, consciente da punição do pecado e do próprio inferno, uma pessoa pode escolher pecar? A realização do mal é uma escolha? Ademais, por que algo que foi legado para realizar plenamente o ser humano, quando este age retamente, pode ser usado para realizar o contrário. Contudo, o livre arbítrio é um bem doado por Deus precisamente por que através dele é possível agir corretamente.
Por ser uma ponte para o bem, Agostinho considera a vontade como um bem médio que nos faz alcançar bens maiores: aquele bem imutável e comum a todos. É neste sentido que o ser humano alcança uma vida feliz, com a busca e a posse da felicidade, que outros conquistaram, na verdade imutável.
Se, por outro lado, pela própria vontade escolher as coisas mutáveis, do mundo, o indivíduo peca e, comparado à vida superior que poderia ter, resigna-se pela morte (Cf. AGOSTINHO, 2001,II, 19, 53). Agostinho critica o impulso da paixão, considerando-o como “[...] tirania do império das paixões que perturba todo o espírito e a vida” (AGOSTINHO, 2001, I, 11, 22). Se ela fosse algo natural no homem, poderia considerá-la como necessária, de modo que ninguém seria culpado por ceder à sua tirania. No entanto, nada de mal poderia ser necessário. Além disso, o livre arbítrio, que é o meio pelo qual a paixão age, é considerado um bem por Agostinho. Para ele, “[...] nada torna a mente escrava da paixão senão a própria vontade” (AGOSTINHO, 2001, III, 1, 2).
É responsabilidade isolada da vontade ceder às paixões em vista de bens temporais e não eternos. Somente assim o castigo pelos pecados faria sentido – ainda que não se questione sua possibilidade –, e de uma mesma maneira apenas assim faria sentido o paraíso, pois não haveria lugar para premiar alguém que agisse de determinada forma pela necessidade. É preciso colocar a ênfase na responsabilidade do ser humano.
Agostinho desenvolve sua discussão colocando a Divina providência em relação ao livre arbítrio. Para ele, poder-se-ia ser que porque Deus sabe o que faremos, nós façamos tudo por necessidade. Ou seja, a um tempo evitaríamos o inferno, pois não há razão para castigo de ações por necessidade e perderíamos nossa liberdade. Agostinho critica essa espécie de fatalismo de tudo o que poderia ser culpável. Em outro sentido, a paixão e o livre arbítrio têm carta branca, isentos de julgamento.
Todavia, a presciência de Deus não implica que algo ocorra, o arbítrio ainda é livre: “A vontade culpável, se estiver em ti no futuro, não deixará de ser vontade porque Deus tem presciência de que ela existirá no futuro” (AGOSTINHO, 2001, III, 3, 7). Ainda que prevista, nossa vontade depende apenas de nós, ao menos até este ponto da argumentação. É nossa responsabilidade escolher entre pecado e virtude; o mal e o bem. Ou seja, “[...] tudo se realiza de tal forma que sempre fica intacta a vontade livre do pecador” (AGOSTINHO, 2001,III, 6, 18).
Por outro lado, Agostinho (Cf. 2001, III, 10, 29) argumenta que há duas formas de pecado, isto é, de uma deliberação corruptível. Retomamos, para esclarecer, uma passagem do artigo de Matheus Jeske Vahl:

[...] o pensamento espontâneo e a persuasão de outrem […]. Pouco debatido neste momento de sua obra, o pecado original é tomado como a “má escolha” feita por Adão que teria gerado uma espécie de contaminação sobre todo o gênero humano. Este “arquétipo” influencia de duas formas na história da espécie humana: (1) com a contaminação da concupiscência de Adão e com (2) os efeitos do justo castigo infringido sobre a natureza de todo o homem, respectivamente, a ignorância e a dificuldade. O mal não é, pois, um ser, ou um estado natural de ser, mas uma forma de corrupção do ser criado bom, corrupção que afeta todo o gênero humano numa espécie de culpa coletiva (VAHL, 2019, p. 79).

Neste ponto, observamos que, para Agostinho, o ensinamento só pode ser do bem, mas a influência é sua forma para o mal. Assim, temos, ao menos neste livro, uma combinação de liberdade da vontade sob a influência constante do pecado, sob a persuasão do mal, da tirania das paixões. Isso somado à ignorância e à dificuldade que se traduzem no desnorteamento ou na capacidade prejudicada da razão em discernir o bem do mal. Essa foi a herança que Adão deixou aos seus descendentes, a saber, que a vontade se encontra “doente” (VAHL, 2019, p. 80).
Urge, portanto, aprender a agir corretamente, uma vez que esta é a vida duplamente vantajosa: através da ação reta o ser humano realiza-se plenamente, aperfeiçoando algo que recebeu do seu criador; de quebra, não corre o risco de perder a ligação com o seu criador, ao realizar apenas as inclinações naturais das paixões. Ser humano é, portanto, realizar plenamente o livre arbítrio da vontade.

Ser livre é obedecer: Kierkegaard

Mil e quinhentos anos depois de Agostinho, Kierkegaard discutiu o conceito de liberdade no cristianismo em termos bem distintos. Na década de 1840, o filósofo dinamarquês escreveu diversos livros sobre como o indivíduo moderno não era ou sequer procurava ser si mesmo. Ser si mesmo era, para Kierkegaard, para além da definição de espírito, ser liberdade (KIERKEGAARD, 1980, p. 29).
Kierkegaard escreve por diversas vezes sob pseudônimos. Um deles, Anti-Climacus, personifica o cristão por excelência. No primeiro livro sob esse pseudônimo, A doença para a morte, Kierkegaard define o ser si mesmo como um vir-a-ser dentro da própria existência que deixaria a condição generalizada de desespero ou doença em direção a uma concordante com a relação divina e com a eternidade. A cura desta “doença”, que é a discordância no interior do indivíduo, é a fé.
É na relação absoluta com o absoluto que Kierkegaard encontra a definição para a fé, que, por sua vez, purificará o pecado em sua relação “transparente” com Deus. No entanto, apesar desta ser a definição de ser si mesmo no cristianismo, Kierkegaard chama atenção para o fato de que, ainda que um cristão, de verdade, seja algo irreconhecível, pois a relação com Deus e sua verdade são apenas subjetivas. Sua reflexão deixa claro que é pouco provável que alguém seja si mesmo em sua época, isto é, que seja liberdade.
Para Kierkegaard, como Anti-Climacus, existe uma proporção entre ser si mesmo, consciência e vontade (KIERKEGAARD, 1980, p. 29). Ainda que o livre arbítrio esteja com o ser humano desde seu primeiro instante, ele pode escolher – paradoxalmente – não ter vontade e não ser si mesmo. No entanto, este livre arbítrio não é liberdade. Em Ou-Ou, sob o pseudônimo Juiz William, o indivíduo só pode escolher se alcança o estágio ético, isto é, no estágio anterior (o estético), isso não seria possível. Escolher seria, para o Juiz, necessariamente, independente do objeto da escolha, escolher por si mesmo e assumir a responsabilidade pelos seus atos. Escolher um eu é, na medida em que este eu se torna um objeto, “criar” ou ter, pela primeira vez, consciência de que há um eu. Em outras palavras: “O eu não existia antes, porque ele veio a existir pela escolha, e, ainda assim, já existia, pois era de fato 'ele mesmo'” (KIERKEGAARD, 1987, p. 167). Este eu do qual temos consciência, que já existia, no entanto, não é ser si mesmo, mas um passo nessa direção.
Assim, escolher faz parte do caminho para a liberdade, mas é apenas o começo. Escolher é uma realização gradual da própria vontade, se cruzarmos ambos os pseudônimos Anti-Climacus e o Juiz William, de maneira que é um aumento do si mesmo. E, de fato, muitos são os que escolhem. Todavia, Kierkegaard observa que as pessoas param por aí. Ele criticará também esta postura da “escolha”, pois o objeto de sua escolha é sempre algo da tradição, de outros, do socialmente aceitável, como casar, ter filhos, ter empregos etc. Neste processo, fazemos escolhas e temos que ser responsáveis por elas, mas se as escolhas são baseadas em escolhas alheias, são mesmo minhas?

 Neste sentido, como crítico da sociedade de massa que começava a se formar na Dinamarca, Kierkegaard tinha diante de si uma sociedade confortável em seu status quo. Criticava especialmente o fato de que bastava nascer para ser chamado cristão e que, assim, para ser um cristão não era necessário nenhum tipo de provação ou transformação interior. Isto é, os cristãos “praticavam” sua fé à distância segura de uma admiração poética das Escrituras. Diluídos na massa, expressam apenas o que o pseudônimo Johannes de Silentio em Temor e tremor chama de herói trágico. Em outras palavras, só havia uma expressão pagã do cristianismo, uma através da qual o “[...] o herói trágico renuncia a si mesmo para exprimir o geral […] encontra segurança no geral [...] sacrifica-se por ele” (KIERKEGAARD, 1973, p. 287-8-9). Não em vão, que em A doença para a morte, Kierkegaard chama os cristãos de pagãos modernos (KIERKEGAARD, 1980, p. 45-6).

Numa sociedade sem indivíduos singulares, há apenas a massa. De maneira que a fim de não escolher, escolhem apenas o que já foi a escolha de outro. A existência humana não repousa em Deus, isto é, em si mesmo, mas “[...] vagamente reside e se mescla em alguma universalidade abstrata (Estado, nação, etc)” (KIERKEGAARD, 1980, p. 45-6) ou, inconsciente de sua condição, ignora a fonte de seu eu.
Similarmente a Agostinho, Kierkegaard acredita que a influência é um caminho para o pecado, isto é, um meio para não realizar o ser si mesmo. É a própria sociedade, incluindo aí a própria igreja, que lança o indivíduo em direção à sua própria doença, o desespero. Todos, assim, são iguais e a culpa de não ser si mesmo é totalmente diluída na sociedade que sequer é sentida. Ademais, é possível ser uma pessoa cheia de honrarias e de grande estima, sem ser si mesmo. Ou seja, há um financiamento social deste tipo de comportamento em direção somente à não-espiritualidade.
Para além disso, em Migalhas filosóficas sob o pseudônimo de Johannes Climacus,Kierkegaard toma o “ensino”, a exemplo de Agostinho, como algo que só poderia ser do bem. Sua explicação é que o único ensino importante na vida é a diferença absoluta entre um indivíduo e Deus. Isto é, o pecado. É ter consciência de que, por meio de Cristo, há uma diferença abismal entre o pecador e um homem santo, Deus-homem. Em A prática do cristianismo, como Anti-Climacus afirmará, este ensino veio não apenas para se ter consciência da diferença, mas para cobri-la. É um chamado para a imitação, para seguir o modelo, para ser também um apóstolo. Nas suas palavras, há “um abismo enorme entre o ator e o poeta” (KIERKEGAARD, 1944, p. 230).
Kierkegaard também aponta para outros fatores que impedem – ainda que pela própria vontade – o indivíduo de se tornar si mesmo, liberdade. Por exemplo, a melancolia e a preguiça se apresentam como uma espécie de herança adâmica, na forma de um humor árido (acedia) que mina a vontade humana em direção ao seu destino espiritual (Cf. ABE, 2021, p. 15-6). Já aqui podemos ver a relação bíblica que é possível haver entre Kierkegaard e Agostinho, pois, para além deste ponto, ao menos para Anti-Climacus, há uma universalidade do desespero. Em outro sentido, é a marca da “doença”, a saber, o desespero, que é a própria morte vivida – como Kierkegaard põe: morrer a morte (KIERKEGAARD, 1980, p. 18).
Assim, podemos observar que, apesar do livre arbítrio no ser humano, há também uma tendência contra tanto sua liberdade – isto é, o si mesmo –, quanto sua escolha, no sentido de que não é a melancolia e a preguiça, as a sociedade, a cultura, a igreja e o Estado minem a vontade humana em direção à sua espiritualidade.

Conclusão

Ao menos nestes pontos, Kierkegaard e Agostinho se encontram na influência e nesta tendência ao erro. De alguma maneira, eles se entendem quanto aos aspectos negativos do ser humano. No entanto, talvez possamos encontrar uma intersecção no aspecto positivo: em Kierkegaard, a liberdade – que é ser si mesmo – se resume a “obedecer” livremente a Deus. Ser livre é se colocar como impotente, mas também responsável; é escolher, mas também obedecer; é ser livre, mas também ser um servo de Deus. Neste sentido, a liberdade só é ela mesma se estiver relacionada com Deus e isso ocorre apenas quando há consciência do “ensino” de Cristo sobre a diferença absoluta, o pecado. Assim, observamos que, para Kierkegaard, a vontade é quantitativa, isto é, pode ser “escolhida” ou muito “escolhida”, mas a liberdade é uma qualidade, o objetivo da existência, ser si mesmo ou não ser.
Em Agostinho, a liberdade é algo exercido na escolha, apesar dos condicionantes ontológicos. E esta liberdade é atingida quando a vontade é guiada pela razão, pelo “ensino” e não seduzida pelas paixões. Contudo, em Kierkegaard, observamos que a liberdade como ser si mesmo e como o aumento de vontade, que é proporcional ao próprio eu ou si-mesmo, é guiada não pela razão. Para Kierkegaard, é preciso superar a razão, pois nossa relação com Deus só pode ser imediata – e não racionalmente medida. Assim, ao contrário de Agostinho a liberdade no mais algo grau de vontade só pode ser alcançada por meio da fé, uma vez que esta relação absoluta com o absoluto, que tem em si a consciência do pecado, tem que ser imediata com Deus.

Referências bibliográficas

ABE, Paulo. O desespero Inconsciente de Kierkegaard: melancolia, preguiça, vertigem e suicídio, Cadernos IHU ideias, Ano XIX, n. 312, v. 19, 2021, p. 1-22.

AGOSTINHO. Diálogo sobre o livre arbítrio. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001.

KIERKEGAARD, S. Either/Or Part II. New Jersey: Princeton University Press, 1987.

______. Temor e tremor. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

______. The Sickness unto Death. New Jersey: Princeton University Press, 1980.

______. Training in christianity. New Jersey: Princeton University Press, 1944.

VAHL, Matheus Jeske. Considerações sobre o conceito de liberdade em Agostinho: uma reflexão sobre a vontade libre no horizonte da teoria da graça,Kínesis, v. XI, n. 26 (Ed. Especial), fev./ 2019, p. 70-91.