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O futuro de uma ilusão: a verdade


Bruna Israel Cavalcante

Estudante, amante da sabedoria

Wellington Lima Amorim

Professor e escritor

O que queremos dizer quando falamos sobre a Verdade? Adaptação dos fenômenos aos conceitos puros da faculdade do entendimento, como formula Kant? Ou, como Platão, estamos falando das coisas em si, que se restringem ao mundo inteligível? Seria a Verdade algo a ser passível de ser possuído pelo ser humano, ou não podemos alcançá-la? Ou, ainda, como diz Nietzsche: “O que ocorreria, porém, se a verdade dos enunciados não passasse de um tipo de engano sem o qual o homem não poderia sobreviver?” (NIETZSCHE, 2012, p.10). 

Como seres humanos, em nosso estar no mundo, tentamos explicar e nomear os fenômenos dentro e fora de nós mesmos. Estas explicações podem aparecer em forma de mitos, contos, fábulas, etc. Também podemos chamar outras descrições de “conhecimentos”, como científico, filosófico e matemático. No entanto, ao atribuir “conhecimento” apenas a estas três formas de explicar o mundo e a nós mesmos, nos esquecemos de que mitos, fábulas e contos também pertencem ao ramo do saber. Qualquer tipo de narrativa humana que tente explicar ou defender uma visão de fenômenos que ocorrem no mundo pode ser fonte de conhecimento. Apesar de vivermos no século XXI, uma era na qual o discurso técnico-científico é considerado como  a única forma de conhecer o mundo, os mitos insistem em permanecer e criar raízes em nossa época. Acreditamos que tudo o que é mitológico ou folclórico foi derrubado pelo discurso filosófico e científico. Mas, ao olharmos mais profundamente para a vida, podemos compreender que estamos vivendo sob o véu de inúmeros mitos, rituais e crendices.

Joseph Campbell, um dos maiores mitólogos de nossa época alega em ‘O Poder do Mito’, que o ser humano sempre, ainda hoje, conta histórias para fazer a vida entrar em consonância com a realidade. Isto porque o mito nos traz experiências de sentido:

 

O mito o ajuda a colocar sua mente com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz o que a experiência é. Casamento, por exemplo. O que é o casamento? O mito lhe dirá o que é o casamento. É a  reunião da díade separada. Originalmente, vocês eram um. Vocês agora são dois, no mundo, mas o casamento não é senão o reconhecimento da identidade espiritual. É diferente de um caso de amor, não tem nada a ver com isso. É outro plano mitológico de experiência. [...] o matrimônio é o reconhecimento de uma identidade espiritual. (CAMPBELL, Joseph. 1990, p. 6)

 

Desta maneira, podemos ver que o costume de uma sociedade, como o casamento, pode ser encarado como um ritual pertencente a uma tipo mitologia. Neste caso, a união entre as partes, assim como o simbologia do yin e yang, podem representar o mito fundante, da junção entre o feminino e o masculino. Campbell dedicou sua vida aos estudos da mitologia comparada e chegou à conclusão de que em todas as sociedades possui mitos e buscam atender as mais primevas questões da existência: vida e morte, divindade, transformação, entre outros. 

De modo que ao comparamos as diversas mitologias, as mesmas têm mais em comum entre si do que diferenças. O historiador judeu, Yuval Noah Harari, em sua obra Sapiens, aponta que os seres humanos só foram capazes de sobreviver na natureza através de sistemas complexos de crenças. Estas crenças não surgem da natureza, mas fazem parte da nossa coletividade, como o dinheiro, justiça, mitos, países, etc. É a partir destes pontos de vista que podemos vislumbrar o quão a nossa realidade está recheada de contos que acreditamos ser verdadeiros, mas que, na verdade, são frutos de invenções humanas para encarar a vida e para viver em coletividade. Estaria Nietzsche correto, quando pergunta se a verdade é um tipo de engano necessário a todos os seres humanos? Através deste viés, foi uma ilusão freudiana defender a tese de que o discurso técnico-científico acabaria com os mitos e as crendices? Na verdade, estamos constantemente recriando mitos, crenças, religiões e deuses. 

Harari aponta, por exemplo, que as idéias capitalistas e comunistas são religiões atuais. Isto porque as mesmas pretendem promover uma espécie de paraíso em vida. Para o historiador, a diferença entre o cristianismo e o capitalismo (ou comunismo), é que o cristianismo promete o paraíso após a vida, enquanto os outros enxergam o paraíso em vida. Se tirássemos todos os nossos rituais, mitologias, sistemas de crença, o que sobraria? A Verdade? E, questionando mais uma vez, o que seria esta Verdade? Seria ela essencial e imutável ou provisória? O único fato que temos aqui, é que necessitamos de narrativas para compreender a nós mesmos enquanto seres humanos e todos os fenômenos externos. 

Nós temos anseio em ordenar as coisas, desejamos ver padrões no caos. Essa é uma necessidade humana, nomear, comunicar, ordenar o caos. Diante deste os seremos humanos experienciam o abandono e o desespero. Afinal, se o mundo não é passível de ser conhecido enquanto totalidade, como podemos nos organizar socialmente? Como podemos dar sentido às nossas próprias vidas? De que vale a vida, se não houver sentido? Nossa existência nos encanta e fascina, nos colocando diante do medo. Portanto, continuaremos a contar histórias e realizar nossos rituais:

 

 Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida. Por exemplo, que o determinado tenha mais valor que o indeterminado, a aparência menos valor que a “verdade”.  (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, p. 11).

 

Como fora ressaltado anteriormente, para que uma sociedade sobreviva, esta necessita de um sistema de crenças e valores. Sem ambos, a sociedade pode deixar de existir. É a partir dos mitos fundantes que os indivíduos sujeitam-se a diversas experiências e regras sociais. Estas leis ou regras, se fundamentam no sistema de crenças vigente e, portanto, são cruciais para a sobrevivência de uma sociedade. Desta maneira, aquilo que é “determinado”, aquilo que é tido como certeza, como Verdade, como regra, é mais bem aceito pelos indivíduos do que aquilo que é incerto, “indeterminado” ou contingente. 

Logo, não precisarão se confrontar com a incerteza da realidade, sua improbabilidade constante e aparente caos. É mais fácil impor regras que serão aceitas socialmente, pois estas são apresentadas como justificativa de uma Verdade. Desta mesma forma, aparência, incerteza e o “talvez”, têm um poder incrível de gerar pânico social e individual. Num mundo recheado de “Verdades”, a incerteza é sempre o pior inimigo. Como não aprendemos a viver sabendo que o mundo é incerto e a natureza caótica, começamos a temer radicalmente qualquer tipo de incerteza e contingência. 

Acreditamos que podemos controlar o mundo, a natureza e seus acontecimentos, vidas e sentimentos. Falhando miseravelmente, com estas tentativas o ser humano se sente atordoado, pois desaprendeu a lidar com o espanto da vida, as forças da natureza e a imprevisibilidade. Além de tentarmos controlar o real, tentamos controlar o Outro e a nós mesmos. “Todo ínfimo conhecimento tem em si uma enorme satisfação: não enquanto verdade, mas como crença de ter descoberto a verdade. Que tipo de satisfação é essa?” (NIETZSCHE, 2007, p. 79) A Verdade, para Nietzsche, é algo que o ser humano necessita desde o seu surgimento. Nietzsche, coloca a questão de que se a Verdade não trouxer conforto, iremos rejeitá-la, pois a mesma só serviria se nos proporcionasse um controle do mundo e de nós mesmos. Segundo o autor, a diferença entre Verdade e crença é de que a primeira já foi uma crença. Todavia, o caráter de crença foi esquecido por nós, e agora chamamos a mesma de Verdade. Ou seja, a verdade se dá por um esquecimento:

 

Conhecer não é explicar; é interpretar. Mas é uma ingenuidade pensar que uma única interpretação do mundo seja legítima. Não há interpretação justa; não há um único sentido. [...] Se não existe uma única interpretação, se o conhecimento é perspectiva e as perspectivas são inúmeras é porque para Nietzsche o conhecimento não tem por objetivo atingir uma verdade. (MACHADO, Nietzsche e a verdade, p. 94)

 

Nietzsche critica o modelo de conhecimento da Modernidade. Este modelo é descrito pelo filósofo como uma busca por verdades apolíneas. Apolo, deus grego do sol e da razão, é a figura que mais representa a Modernidade.  Um dos maiores objetivos na Filosofia Moderna foi a procura por Verdades racionais e eternas. Com a razão tudo pode-se conhecer, evidenciar e explicar qualquer evento. Era a razão que também nos traria conhecimentos como Verdades indestrutíveis. Com a chegada da teoria kantiana, o conhecimento tornou-se adequação entre forma e matéria e dessa maneira, o conhecimento seria fruto do ser humano, não uma verdade acerca do mundo, mas sim um constructo. Para Nietzsche, o conhecimento só existe em favor da sobrevivência em sociedade. Ou seja, necessitamos de sentido. E este o único objetivo do conhecimento, pois enquanto espécie, não conseguimos sobreviver sem estar em um grupo que indique um telos.

 

Bruna Israel Cavalcante, estudante, amante da sabedoria

 

Wellington Lima Amorim, professor e escritor.



Referências 

 

NIETZSCHE, Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra Moral, 2012

 

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito ,Ed. São Paulo: Palas Athena, 1990

 

HARARI, Yuval. Sapiens. Companhia das Letras, 2020

 

NIETZSCHE, Além do Bem e do Mal, Ed. Vozes, 2014