Ceticismo ou a arte de viver sem razões
Jasson da Silva Martins
Doutorando em Filosofia – (UFBA)
Mestre em Filosofia – (UNISINOS)
Introdução
Já faz algum tempo que tenho me inclinado a pensar alguns aspectos da tradição filosófica sob uma outra perspectiva, aquela que pode ser caracterizada como exercício espiritual, a partir de Pierre Hadot. Meu objetivo no presente texto não é expor as teses de Hadot, mas avançar, à minha maneira, na compreensão/apreensão de um tema caro à tradição cética que possui relevância e importância para a vida. Apresentar uma concepção do ceticismo visando a arte de viver é uma forma de exercitar o pensamento.
O ceticismo é uma tradição de pensamento e isso não está em questão. A questão é saber se é possível ser cético, sem entrar em contradição, no campo do agir. Embora o ceticismo seja confundido com a arte de duvidar, seria possível viver duvidando sempre de tudo? O resultado do ceticismo, sem se assemelhar às demais correntes de pensamento, pode corroborar com uma certa arte de viver? Após apresentar alguns aspectos históricos do ceticismo e algumas críticas clássicas ao movimento, gostaria de ressaltar que o ceticismo é uma arte de viver sem razões, uma arte de justificar a vida às avessas, com simplicidade e sem cair no conformismo do dogmatismo.
Qual ceticismo?
Segundo uma longa tradição, o ceticismo não é uma doutrina séria. Essa desconfiança é tal que é possível questionar a existência de verdadeiros céticos. O cético afirma que tudo é incerto e que é preciso duvidar de tudo. Será mesmo? Para Michel de Montaigne, por exemplo, a linguagem impede o sucesso do cético: “Observo os filósofos pirrônicos, que não podem expressar sua concepção geral em nenhuma forma de falar, pois precisariam de uma nova linguagem. [...] de forma que, quando eles dizem: ‘Eu duvido’, incontinenti são agarrados pelo pescoço para serem obrigados a admitir que pelo menos asseguram e sabem que duvidam” (MONTAIGNE, 2006, II, XII, p. 291).
A essa crítica de Montaigne é preciso acrescentar aquela crítica de Arnauld e Nicole, autores da Lógica de Port-Royal: para eles, duvidar da evidência é falar contra seu coração, é duvidar da realidade do mundo exterior ou do truísmo de certas afirmações que deveriam se impor ao nosso espírito: “Ninguém duvida nunca, seriamente, que haja uma terra, um sol e uma lua, nem que o todo seja maior do que a parte. Podemos muito bem fazer dizer, externamente, da boca para fora, que disso duvidamos, porque podemos sempre mentir, mas não podemos dizê-lo, internamente, ao nosso espírito” (ARNAULD; NICOLE, 2016, p. 12).
O pseudônimo Johannes Climacus, concebido por Kierkegaard como um autor cético e desiludido com os sistemas filosóficos modernos e com a religião cristã – protestantismo pietista da Dinamarca do seu tempo –, afirma que é impossível superar o ceticismo antigo. Para ele “... a dúvida é uma forma superior a todo raciocínio objetivo” (KIERKEGAARD, 2003, p. 114). A dificuldade de superar, pela via do raciocínio, torna-se algo infinito, pois, se é preciso duvidar de tudo, é preciso duvidar da dúvida... logo algo insuperável pelo próprio pensamento, uma vez que ele não teria como se deter para iniciar a atividade de duvidar. O lado positivo da reflexão de Climacus é que o oposto da dúvida cética não pode ser o sistemático, o dogmático, ou seja, um sistema filosófico ou uma religião. O caminho está aberto, portanto, para o pensamento, ou seja, para esta forma superior de raciocínio.
Além destas três críticas, é preciso superar aquela imagem “clássica” do cético, descrita por alguns testemunhos (Cf. Diógenes Laértios) segundo a qual Pirro não evitava nenhum perigo por pura indiferença às coisas. É preciso superar essa imagem com o argumento que “supostamente” fundamenta essa imagem: a mesma fonte afirma que Pirro precisava sempre de uma companhia para se movimentar e sobreviver. O que a necessidade de companhia nos revela? Ela mostra que o ceticismo de Pirro não era viável do ponto de vista prático.
Ora, se o ceticismo é impossível do ponto de vista da linguagem (Montaigne); se ele é uma seita de mentirosos (Arnauld e Nicole); se ele leva à dúvida infinita (Johannes Climacus) e se ele não serve nem mesmo para impedir Pirro de cair no pântano... como este movimento pode ser concebido como uma arte de viver? Se estas críticas forem aceitas tais quais foram descritas acima, a verdade sobre este movimento só pode ser esta: o ceticismo é uma filosofia da má fé, pois não somente é incoerente do ponto de vista teórico, mas impraticável do ponto de vista da vida cotidiana. Se é assim, o ceticismo é um mero exercício do pensamento.
É necessário, no entanto, perguntar: estas críticas são corretas? Elas não passam ao largo do essencial da tradição cética? Seria possível restituir e situar a filosofia cética como escola de sabedoria? Para realizar esse objetivo é preciso, na contramão da tradição descrita acima, demonstrar que é possível reconstituir o ceticismo e pensá-lo como uma filosofia coerente que escape às objeções que lhes foram habitualmente endereçadas.
A exigência requerida como ponto de partida para a superação da crítica e para a “reconstrução” é bem simples: nada pressupor. Não pressupor, por exemplo, que a vida necessita de uma razão para ser vivida. O resultado, quando e se for atingido, será simples, evidente e acessível a todos. Se o resultado não for atingido o filósofo poderá confessar, sem ressentimento ou medo, a exemplo de Osvaldo Porchat Pereira: “A ataraxia cética, eu fui incapaz de atingi-la” (1993, p. 32; cf. p. 118). Sim, o objetivo do ceticismo pode ser definido como a buscada da ataraxia, ou seja, o gozo resultado da tranquilidade da alma, logo, como uma sabedoria prática. É sobre este ceticismo que eu quero tratar, não sobre aquele movimento que se confunde com um mero exercício de pensamento.
A busca da tranquilidade
Como preparação para discutir o meu tema, preciso retornar às origens do ceticismo a fim de expor o sentido e o alcance dos argumentos céticos. Ao atualizar a discussão em consonância com o tema proposto, a principal dificuldade de interpretação vem, justamente, da multiplicidade dos procedimentos céticos que nos chegaram através das principais fontes antigas. O ceticismo não é apenas um problema filosófico, mas também histórico.
De forma resumida, a tradição destaca dois movimentos que evoluem com mais ou menos influência recíproca: o primeiro recobre os quatro primeiros séculos da era pré-cristã e é formado a partir da figura fundadora de Pirro de Elis. O vocábulo “pirronismo” se refere às palavras e gestos de Pirro que foram teorizadas por seu aluno Timon de Filiunte. Este primeiro movimento foi retomado, renovado e ampliado, em seguida, por Enesidemo e Sextus Empiricus. O que chama atenção neste primeiro movimento é que ele não constitui uma “Escola”, apesar de se definir em relação à sabedoria ensinada por Pirro. Um primeiro problema é terminológico: o termo “pirrônico” é frequentemente usado para qualificar um cético, mas nem todo pensador cético é, necessariamente, pirrônico.
O segundo movimento cético, conhecido como a Nova Academia, se situa na linha direta de Sócrates e de Platão. A Nova Academia se desenvolveu no interior da escola mais célebre da antiguidade. A ruptura ocorreu a partir do momento em que Arscesilau tomou posse como novo chefe da escola, aquela mesma fundada por Platão. Ele deu início a virada cética da Academia que continuou através da sucessão dos novos dirigentes, a exemplo, de Carneades, Clitômacos, Fílon de Larissa, etc..
A tradição cética caracterizada como Nova Acadêmica se define principalmente contra outras escolas, especialmente epicurista ou estoica, que são ditas “dogmáticas” por sua pretensão em poder identificar um bem ou um mal por natureza (epicuristas); bem como pretender distinguir a verdade de uma mera opinião (estoicos). O procedimento do ceticismo da Nova Academia pode ser resumido assim: o desenvolvimento de uma argumentação inspirada no procedimento socrático de oposição de argumentos e a refutação de teses adversárias. O objetivo é preservar os textos do mestre (Platão) de uma leitura dogmática.
A tendência da tradição é tratar os dois movimentos como antagônicos. Mas, será que ambos possuem algum elemento em comum? Apesar da divisão histórica que há entre os céticos, há um projeto comum que os une: todos os céticos estão de acordo em considerar que a filosofia é uma procura da tranquilidade em matéria de opinião e de moderação dos afetos. Essa é uma grande novidade no contexto da filosofia clássica. Ante ao dogmatismo, que visa atingir o conhecimento certo das coisas e levar os indivíduos a certeza, mesmo em temas em que a realidade é incerta, o ceticismo afirma que a primeira atitude é rejeitar o dogmatismo como método e relativizar o objetivo procurado.
O exercício cético é um exercício de crítica severa, sem deixar nada no lugar. A tarefa, então, é dupla: apontar e destruir os erros dos dogmáticos e, no mesmo movimento, abdicar de construir novas teses, novas verdades. Em um mundo que clama por uma razão para viver, é permitido, então, perguntar: é possível viver sem razões? A resposta pode ser encontrada na obra Hipotposes pirrônicas, especialmente no livro I, 25-30, de autoria de Sextus Empiricus. O pressuposto geral do referido trecho é: todo aquele que exerce a reflexão como exercício mais ou menos sério, em algum momento da vida já fez pergunta insólita que, se for levada a sério, é o início da filosofia:
- Você já suspendeu o seu assentimento em decorrência de uma intuição metafísica acerca do real?
- Você já se deu conta, em algum momento da vida, que há diferença entre uma vida refletida e uma vida displicente e conformada às crenças mais que questionáveis?
- Você já suspendeu o juízo, ou seja, deixou de aceitar tranquilamente as opiniões recebidas no que diz respeito aos afetos e às paixões que mobilizam a sua vida?
Antes de mais nada, é preciso concordar que estas são questões genéricas e quase todo mundo já se fez em algum momento. A diferença é a persistência na pergunta, como forma de obter uma resposta. Foi dito antes que é próprio do cético manter a suspensão do juízo como método, em vez de adotar uma resposta, por mais razoável que ela pareça. Essa é uma característica que une ambos os movimentos céticos (pirrônicos e acadêmicos): ambos procuram suspender o juízo e não dar o assentimento com o objetivo de atingir o estado de tranquilidade (ataraxia) no que diz respeito às opiniões e, com alguma sorte, gozar de certa moderação no que diz respeito aos afetos.
Através deste procedimento o cético visa realizar uma terapia dos desejos, combater as inquietações originadas no intelecto e gozar de um conjunto de afetos que importam para a uma vida feliz. Para isso os filósofos céticos recorrem ao princípio da isostenia com o objetivo de levar ao extremo as teses dos filósofos dogmáticos, obrigando-os a suspender o juízo. O princípio da isostenia é muito simples de caracterizar: a todo argumento pode se opor um outro argumento contrário de força igual. É justamente por falta de critério para decidir entre esses argumentos que o cético opta pela suspensão de seu juízo antes de ser arrastado às ilusões e crenças dogmáticas.
O inacessível conhecimento
Os céticos, além do que já foi dito, criticam o otimismo gnosiológico que pretende conhecer a verdade e transmiti-la. No contexto da história das ideias essa é uma nova maneira de fazer filosofia. O cético não é indiferente diante do saber. O que ocorre é que ele é animado por uma prudência extrema. É essa prudência que impede o cético de fazer afirmações taxativas e definitivas ou contrapor teses através de teses contrárias. O cético é conhecido como alguém que faz afirmações gerais, tais como “tudo é incerto”. Essa afirmação pode soar como objeção do “dogmatismo negativo”. De fato, essa objeção estrutura o desenvolvimento da história do ceticismo.
Para um cético acadêmico o objetivo não é afirmar peremptoriamente que a verdade é desconhecida e inacessível, mas provocar a suspensão do juízo face às teses que se apresentam como verdadeiras. O que essa crítica pressupõe é uma nova maneira de argumentar: agora não é suficiente escrever, sustentar teses, discutir e refutar outras teses, tirar conclusões etc., filosofar não é reconhecer a validade de um determinado modelo de racionalidade. O cético desconfia que a linguagem é, por essência, dogmática: toda proposição visa fazer uma descrição de um estado do mundo, visam revelar algo sobre como as coisas são na realidade.
A prática filosófica de um cético pirrônico, diferente daquela dos acadêmicos, visa descrever a maneira através da qual as coisas nos aparecem subjetivamente. O objetivo do ceticismo pirrônico é permanecer no nível da descrição e para isso importa não sustentar opiniões a propósito da natureza das coisas. Em vez de dizer “isso é” ou “isso não é”, o cético pirrônico ameniza o enunciado afirmando “isso me parece” ou “isso não me parece”. Todo enunciado cético, no contexto pirrônico, soa como a recensão de seus próprios estados subjetivos.
Os argumentos empregados pelo cético não visam mais descobrir a verdade ou descrever uma realidade objetiva, mas possuem um uso essencialmente dialético. A linguagem cética não descreve relações entre as palavras e as coisas e sim a relação entre as palavras, entre os argumentos que se opõem entre si. O objetivo não consiste em afirmar, dogmaticamente, que as coisas são incompreensíveis, mas antes produzir aporias sobre objetos teóricos. Essa postura ficou popular, com o estabelecimento dos famosos “tropos” por Enesidemo. Reafirmando o que já foi dito: o objetivo da argumentação cética não é estabelecer a verdade de uma proposição e sim realizar uma refutação.
Se não visa a verdade... como fazer um uso positivo da refutação? Melhor ainda, como retirar daí algo que possa ser útil para a vida? Essa aparente distância pode ser desfeita aproximando a função estritamente refutativa da argumentação cética daquela do modelo médico. Todos sabemos que o objetivo do médico não é produzir um discurso verdadeiro a respeito da doença e sim curar o paciente. Assim como o médico, o objetivo do cético é curar o dogmático da doença que o impede de chegar à tranquilidade da alma.
A verdade torna-se uma questão secundária à medida que é preciso se precaver do mal representado pelo dogmatismo. Lembre-se, caro leitor, o objetivo é retirar os entulhos que impedem a ataraxia. Um dos graves equívocos do dogmático é a precipitação dos afetos que o leva a afirmar mais do que aquilo que ele pode demonstrar. É a doença da precipitação que faz com que o dogmático se agarre às suas opiniões como se elas refletissem a verdadeira natureza das coisas. A exemplo do médico que utiliza substâncias para restabelecer o equilíbrio dos humores, os argumentos dos céticos, ao questionar e levar à suspensão do juízo, visa curar o dogmático do seu dogmatismo. Ao fazer isso o cético restabelece o equilíbrio das opiniões do dogmático. Por fazer um uso estritamente persuasivo da filosofia, o cético se mantém distante da verdade ou da falsidade de um argumento.
Após o que foi dito, a suspensão do juízo pode ainda se manter como único objetivo do ceticismo? Se este for o caso, trata-se de um gesto dogmático. Foi Sextus Empiricus quem afirmou que a suspensão do juízo não é uma tese própria ao ceticismo. Segundo ele a suspensão do juízo é o ponto de chegada de uma filosofia dogmática que procura a verdade para responder às confusões da alma. Sendo assim, uma vez que esta busca da verdade é confessadamente impossível, seria mais sábio renunciar a ela. O que ocorreria, em seguida, ao abandonar a sua busca? Obteria aquilo que procurava, a saber, a tranquilidade em matéria de opiniões e de afetos. Mas o cético não abandona a sua busca, uma vez que ele não renunciou a busca e sim as glórias prometidas pelo dogmatismo. Esta ideia é ilustrada pela célebre imagem do pintor Apeles que, não conseguindo imitar a escuma saindo da boca do cavalo, lança a esponja sobre o quadro que acaba de pintar e, assim, consegue produzir a escuma que ele queria imitar (Hipotposes, I, 28-29).
A descrição do ocorrido com Apeles revela algo essencial: o ceticismo se constrói sobre as ruínas das teses dogmáticas. Em termos positivo, a imagem ilustra o objetivo final da filosofia cética: a suspensão do juízo é apenas uma consequência do fracasso do dogmatismo para fundar uma arte de viver. Se não existe um método para atingir o fim procurado, então, a tranquilidade da alma é obtida de modo fortuito, sem a utilização de um método específico. O ganho é duplo: utilizando esta estratégia, o cético assegura a si mesmo de jamais defender teses; depois, ele pode gozar de eventuais consequências positivas dos fracassos de um itinerário intelectual.
Viver sem razões
A crítica radical do conhecimento parece conduzir o cético à suspensão do seu juízo a propósito de toda proposição leva-o a viver sem razões. Se isso é verdade, então, o cético seria reduzido à inatividade. No entanto, o cético vive e este fato possui suas próprias exigências. Uma delas é esta: para viver é preciso agir. Sendo assim, até onde posso levar a suspensão de assentimento?
Afinal, é possível admitir que algumas impressões que nós recebemos dos objetos comportam diferenças entre elas: algumas são plausíveis, outras nem tanto. Uma regra geral pode ser assim obtida: algo que não era um critério de verdade tornou-se um critério de ação. Assim o cético pode, sabendo que é impossível atingir a verdade, agir conforme às exigências da vida prática.
Em sua obra máxima Sextus propõe quatro regras que podem ser seguidas na vida cotidiana (Hipotipose, I. 23-24): 1. Agir segundo a tendência de nossa natureza sensível e intelectual; 2. Agir segundo a necessidade dos afetos que nos levam a desejar bens necessários para nossa sobrevivência; 3. Agir segundo a tradição das leis e dos costumes impostos pela vida em sociedade; 4. Agir segundo a aprendizagem das artes que aumentam nosso domínio da natureza e nos faz ter acesso à cultura.
Cada uma dessas quatro regras é comentada pelo autor na sequência do texto. A terceira regra que aconselha a fazer da tradição das leis e dos costumes o guia de nossa vida pode parecer extremamente conformista, até mesmo perigosa. O leitor interessado pode ler sobre esta e as demais regras na moral provisória de Descartes. Uma vez que o núcleo da discussão é a vida prática, toda decisão se inscreve em um contexto de normas já instituídas e deve se apoiar sobre aquilo que nos aparece em um dado momento.
Se agir supõe imitar modelos de ação que tem dado provas no passado, isso não implica que todo modelo deve ser seguido simplesmente porque é lei. Uma lei que não for capaz de se mostrar plausível não merece ser seguida. A legitimidade de uma lei não pode ser legitimada, no campo da ação, pelo fato de ser justificada universal e necessariamente. Kant nem sempre tem razão. A verdade mais profunda, mas humana... é aquela que está diante de nós e todo sujeito sensato e conhecedor de si, sabe o que deve fazer.
Conclusão
O projeto de uma vida sem razão corre o risco de desaparecer – como comumente ocorre –, atrás dos argumentos sofisticados ou supostamente sagrados. Por isso mesmo, o ceticismo pode ser descrito como uma maneira perene de apresentar problemas filosóficos, sem ficar preso a uma determinada escola, uma vez que é uma prática reflexiva e não uma teoria. Deixemos aos dogmáticos o aspecto “sagrado”, a “antiguidade”, a “ancestralidade”, como pressuposto do agir moral. O que importa é viver reflexivamente sem razão ou com uma razão que dure até surgir um fato ou um argumento mais plausível.
É preciso ter consciência que a prática argumentativa dos céticos pressupõe uma obediência às regras da razão: se há suspensão do juízo, isso não ocorre porque o cético está indeciso face à duas razões de igual valor, mas porque é razoável não fazer escolhas arbitrárias. O cético possui o desejo e a faculdade de reconhecer a validade de um argumento para produzir a suspensão do juízo e, por isso, pode reconhecer que uma certa verdade lógica é procurada nesse processo. Embora o cético não procure a verdade ele é capaz de reconhecer certos princípios de razão para desvelar as contradições dos dogmáticos. Ele chega a esse reconhecimento como objetivo último e inesperado e não como ponto de partida. Esse objetivo último é conquistado não através da disputa de teses com os dogmáticos, mas através do reconhecimento que uma vida sem razões é melhor vivida.
Referências
ARNAULD, Antoine; NICOLE, Pierre. A lógica ou a arte de pensar. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2016.
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
DIOGÈNE LAËRCE. Vies et doctrines des philosophes ilustres. Paris: La Pochothèque, 1999.
KIERKEGAARD, Søren Aabye. É preciso duvidar de tudo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2006 (v. II).
PORCHAT PEREIRA, Oswaldo. Vida comum e ceticismo. São Paulo: Brasiliense, 1993.
SEXTUS EMPIRICUS. Esquisses Pyrrhoniennes. Paris: Points, 1997 [Grec-Français].