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UMA REFLEXÃO SOBRE A POBREZA

 

ADENAIDE AMORIM LIMA

Doutoranda em Filosofia – UFSM

Mestre em Educação – UESB

 

Introdução

            É possível uma reflexão filosófica sobre a pobreza? Uma vez que a filosofia reflete em torno de conceitos, é sempre complicado abordar tópicos que não estão dentro de um horizonte conceitual prévio. A pobreza, como veremos abaixo, não é algo conceitual ou uma “realidade” historicamente estável. Refletir, então, sobre este tema pode significar expor o quanto o seu sentido foi mudando de acordo com a sociedade. Essa mudança, claro, não significa que a situação foi melhorando, mas sim que o tema foi sendo tratado de acordo com a situação histórica de cada sociedade.

            Para abordar o tema propomos, inicialmente, uma abordagem histórica do fenômeno da pobreza, expondo as variações que a noção sofreu ao longo da história. Atualmente, no contexto do capitalismo, a pobreza diz respeito a algo passível de ser quantificado. Mas uma reflexão sobre esta noção deve ir além e questionar as tentativas de definição que abrange os aspectos socioeconômicos.

 

A pobreza no contexto religioso-medieval

 

A partir dos estudos de Pinzani (2017) podemos inferir que a história da pobreza está dividida em dois grandes momentos: um que vai até a Idade Média e outro que é inaugurado com o final dela. De acordo com esse mesmo autor, não somente as causas da pobreza são diferentes nesses momentos, mas também a forma como percebemos a pessoa pobre nesses contextos históricos e sociais. Nessa transição, muitos são os fatores agregados às discussões acerca da pobreza.

No primeiro momento de seu estudo o autor procura discutir a questão da responsabilidade e da justificativa moral para a pobreza, ao mesmo tempo em que desvenda de onde surgiu a concepção tão difundida, inclusive aqui no Brasil, de que “quaisquer que sejam as causas históricas da pobreza, ela poderia ser superada, se só os pobres o quisessem e se esforçassem o suficiente para conseguir este resultado” (PINZANI, 2017, p, 349, grifos do autor).

Inicialmente, a visão que a nossa sociedade tinha da pobreza não permitia que o pobre fosse responsabilizado por sua condição, antes ele era mais uma vítima das circunstâncias. Atribuía-se como causas da pobreza fatores como: as guerras, a estrutura rígida da sociedade (a predestinação social), os desígnios divinos e a natureza (secas, epidemias, pragas, altos preços dos alimentos, crises econômicas, etc.). 

Na Idade Média podemos constatar uma mudança de perspectiva: agora há uma função social para a pobreza, que beira a exaltação da mesma, uma vez que – seja como escolha ou predestinação – a pobreza é concebida como o caminho mais curto para se chegar ao reino dos céus, uma bem-aventurança, conforme os dizeres bíblicos. Nesse contexto, o sentido da pobreza é integrado ao corpo social e possui uma importante utilidade.

 

Na sociedade medieval, na qual cada grupo social tinha uma função específica, os pobres estavam longe de serem excluídos ou de serem considerados inúteis. Pelo contrário, tinham a dupla função de permitir aos outros a prática da caridade, que era um instrumento de “salvação da alma”, e de contribuir, por sua vez, à “salvação” de seus benfeitores através de suas orações (PINZANI, 2017, p. 350).

 

Desse modo, os pobres eram salvos por sua condição de pobreza e eram, também, os responsáveis pela salvação dos não pobres, dos quais recebiam a caridade. Muitos mártires e santos medievais da igreja católica ressaltaram a pobreza como um modo de vida mais santo e próximo de Deus. Um exemplo icônico é o de São Francisco de Assis que inspirou muitos seguidores. Estes, por sua vez, estabeleceram modos diferentes de compreender a pobreza e de vivenciá-la. De acordo com Agamben, os franciscanos Hugo de Digne e Boaventura são os principais responsáveis por empregar o termo usus para caracterizar o modo de vida franciscana. Ambos definiram, cada qual, uma relação moral da pobreza com o uso das coisas. Em seu tratado intitulado De finibus paupertatis, Hugo de Digne elabora uma definição da pobreza negativa em relação ao conceito de propriedade. Para ele a pobreza é uma,

 

[...] renuncia espontânea à propriedade por causa do Senhor [...] enquanto a propriedade é definida tecnicamente como [...] direito de domínio, pelo qual se diz que alguém é senhor da coisa, pelo qual se diz que a coisa mesma é sua, ou seja, própria do senhor (AGAMBEN, 2014, p. 127).

 

Segundo Hugo de Digne, o homem não deve abnegar a lei da natureza e, portanto, não deve renunciar aos bens, sem os quais sua sobrevivência seria impossível. Para ele, a lei natural “prescreve aos homens que tenham o uso das coisas necessárias para sua conservação, mas não os obriga de modo algum à propriedade” (AGAMBEN, 2014, p. 127).

Já Boaventura, em sua Apologia pauperum escrita em 1269, concebe quatro formas de se relacionar com as coisas materiais: “a propriedade, a posse, o usufruto e o simples uso” (AGAMBEN, 2014, p. 128). Boaventura entende e defende que, dentre estes quatro tipos de relação,

 

[...] só o uso é absolutamente necessário para a vida dos homens e, como tal, é irrenunciável [...]. Os frades menores, que se dedicaram a seguir Cristo em extrema pobreza, consequentemente renunciaram a todo direito de propriedade, conservando, porém, o uso das coisas que outro lhes concede (AGAMBEN, 2014, p. 128).

 

Conforme podemos perceber, a pobreza nesse contexto medieval é concebida como uma espécie de virtude. Era virtuoso se abster da vida material e viver do necessário concedido pela caridade alheia. Com o fim da Idade Média um novo olhar acerca da pobreza é inaugurado, mas ainda podemos perceber os resquícios do olhar antigo no reinado de Elisabete I, onde se cobrava um imposto aos proprietários para financiar a caridade pública, ainda aqui, as leis “e instituições tratam a pobreza como um fenômeno natural, mas não atribuem suas causas aos pobres” (PINZANI, 2017, p. 351).

Conforme Pinzani (2017), na sociedade tradicional europeia, já no final do período mercantilista, o pobre não era mais aquela vítima dos infortúnios do destino ou da natureza, mas, era aquele que tinha que trabalhar arduamente e penosamente para conseguir sustentar a si e a sua família. Os ricos, na maioria aristocrata, eram aqueles que de forma quase parasitária, viviam no ócio e do trabalho do outro, o pobre.

Na sociedade pré-moderna os pobres eram em sua maioria lavradores, operários de oficinas artesanais e outros que exerciam atividades braçais. O trabalho ocupara praticamente todo o seu tempo e todos os membros da família tinham que trabalhar para conseguir sobreviver, inclusive as crianças.

 

A pobreza no contexto capitalista

 

Posteriormente, a visão em relação ao pobre e a pobreza muda radicalmente. Três foram os fatores responsáveis por essa mudança de perspectiva, cujas consequências vivenciamos em nossos dias: a Reforma com sua variante puritana e calvinista; a teoria do naturalismo social de Malthus e o advento do capitalismo associado ao surgimento da era industrial.

Com a chegada da Reforma e da ideologia calvinista os pobres perdem a sua utilidade social já que, a partir daquele momento, cada um passou a ser único responsável pela sua salvação e o contato com Deus passou a ser direto. Nessa perspectiva, a posição social de cada indivíduo passou a ser considerada como o resultado de seu próprio sucesso ou fracasso. Nesse contexto, os pobres passaram a ser os únicos responsáveis por sua condição.

Influenciada por esse pensamento, a partir de 1601 a Inglaterra passou a dividir os pobres em três categorias e cada uma destas categorias passou a receber um tratamento diferenciado: os idosos e os deficientes recebiam um tipo específico de assistência; os aptos eram obrigados a trabalharem e os considerados vagabundos e preguiçosos eram punidos como criminosos.

Com o surgimento da teoria naturalista de Malthus, a sociedade passa a ser compreendida do ponto de vista da natureza e os indivíduos a partir de uma perspectiva biológica, dando início a uma tese denominada “antipobre”. Segundo essa tese, se os pobres continuassem a receber caridade eles ficariam mal acostumados e nunca iriam sair da sua condição de pobreza, o que seria pior, a caridade estaria incentivando-os a se procriarem de forma irresponsável, agravando ainda mais a pobreza social. Orientada por essa teoria malthusiana, a partir de 1834, a Inglaterra praticamente aboliu a caridade pública.

 

[...] e obrigava os pobres a escolher entre aceitar qualquer trabalho ou ficar presos nas workhouses (centros de trabalho organizados como prisões), sem direitos legais e políticos, e “num regime de estrita disciplina e de abstinência sexual – esposos e esposas eram separados, como o eram pais e filhos” (PINZANI, 2017, p. 356).

 

Mesmo não tendo fundamentação científica na época e até contrariando muitas pesquisas empíricas posteriores, até na década de 1990 esta tese serviu de base para políticas públicas americanas.

É óbvio que os pobres obrigados a trabalharem não deixaram de ser pobres. Mas algo curioso aconteceu: “os trabalhadores passam a ser assimilados aos pobres” e, com a passagem da sociedade mercantilista para a capitalista, a pobreza se revela como um fenômeno de massa. Uma vez que, nos primórdios do capitalismo, não era necessário mão de obra qualificada, “mas de trabalhadores sem habilidades específicas, capazes de realizar movimentos repetitivos [...] [cria-se] uma contínua concorrência entre os trabalhadores, puxa os salários para abaixo do nível de subsistência” (PINZANI, 2017, p. 352).

Nesse contexto social dá-se o início a um fenômeno que até então não existia, a da massa marginalizada de trabalhadores. Uma vez que “[...] não há como absorver essa massa de pessoas dentro do sistema capitalista. [...] é a própria estrutura da sociedade capitalista contemporânea que provoca seu surgimento” (PINZANI, 2017, p. 363). É essa massa excluída do sistema capitalista que formará a parcela pobre de nossa sociedade. Quem melhor tira proveito disto é o próprio capitalismo.

 

Pensar a pobreza

 

A pobreza não é objeto de análise de uma única área de conhecimento, por essa razão encontramos na literatura uma gama de conceitos em relação à pobreza e ao pobre, a partir de variadas perspectivas: religiosa, filosófica, sociológica, antropológica e econômica. O interessante é que por serem visões diferentes em relação a um determinado fenômeno esses conceitos podem se complementar em alguma medida.

Geralmente, a perspectiva religiosa leva em consideração o exercício da caridade, a pobreza é vista como uma dimensão do espiritual; a perspectiva filosófica por ser normativa, apesar de ser retirada a partir da observação do imanente, é a única passível de universalização, o seu conceito é uma orientação para um dever ser e aponta para a superação de uma situação; a perceptiva sociológica é mais descritiva, leva em conta as condições sociais e aponta para uma solução de forma dimensionada, do contexto estudado; a antropológica leva em conta a dimensão cultural e o modo de vida; a perspectiva econômica leva em consideração a renda e o acesso a ela.

A partir de uma dimensão filosófica, de um conceito universal de pobreza, “pobre seria todo aquele que não tem acesso ao que é socialmente produzido”, e nesse caso “a identificação da pobreza é um reconhecimento da privação” (SEN, 2012, p. 170). No entanto, é preciso ponderar o quanto essa privação é passível de recomendação para alguma política ou não, “e o exercício primordial consiste em decidir quem está verdadeiramente privado conforme isso é julgado na sociedade em questão” (Idem, p. 170).

Com esse objetivo, a maior parte dos conceitos desenvolvidos em relação à pobreza leva em consideração um limite, uma linha denominada “linha da pobreza” segundo o qual, abaixo desta linha o indivíduo estaria correndo sérios riscos. Mas quem decide esse limite e qual seria ele? Trata-se de uma medida convencional, conforme o pensador indiano: “A medida convencional da pobreza, ainda largamente empregada, parte desse ponto para a contagem do número de pessoas abaixo da linha da pobreza – assim chamada “incidência” [...] a fração da população identificada como pobre” (SEN, 2012, p. 165).

No entanto, essa “incidência” não revelaria, segundo o referido autor, quem estaria pouco ou muito abaixo dessa linha. Em contrapartida, outra medida que também é tradicionalmente utilizada, é o “hiato de renda”, que se refere à “renda adicional que seria necessária para elevar todos os pobres até o nível da linha da pobreza, isto é, a renda mínima que seria suficiente para eliminar a pobreza” (SEN, 2012, p. 166). Porém, nenhuma das duas são adequadas, segundo o autor, pois nenhuma delas leva em consideração a distribuição de renda entre os pobres. Nesse sentido, é necessário haver uma medida que aponte a desigualdade na distribuição de renda entre os próprios pobres.

Em seu estudo, Amartya Sen procura demonstrar como essa distribuição deveria ser feita e os fatores a serem levados em consideração, uma ponderação feita a partir de um ranking. Tendo em mente que alguns pobres são mais pobres que outros “a ponderação por unidade da insuficiência de renda de cada pessoa pobre deve aumentar sua posição no ranking de pobreza” (SEN, 2012, p. 167). No entanto, a questão sobre quem determina a linha de pobreza continua para nós ainda em aberto.

O estudioso Alfredo Costa, ao abordar os mais variados conceitos de pobreza, enfatiza o seguinte: “Qualquer definição de pobreza assenta, explícita ou implicitamente, em juízos de valor” (COSTA, 1984, p. 287). Desse modo, o autor aponta para a elaboração de conceitos tendenciosos na medida em que “os padrões mínimos são estabelecidos não com base em critérios científicos e escolhas arbitrárias de técnicos ou políticos, mas de acordo com a avaliação que os próprios interessados fazem da respectiva situação” (Idem, p. 287).

Não podemos deixar de frisar que, com o objetivo de ter um conceito “mais real” de pobreza, alguns pesquisadores têm buscado precisamente com os pobres um conceito mais justo, conforme ressalta o trabalho de Pinzani. No entanto, essa estratégia também tem encontrado limites: a escolha dos sujeitos de pesquisa que já implicaria em um julgamento a priori do pesquisador; falta de clareza do próprio pobre em relação a sua condição, etc.

 

Conclusão

 

A apresentação da pobreza e a mudança que esta noção sofreu em diversos períodos da história revela o quanto a compreensão deslocou do contexto religioso para o contexto econômico. Na breve história que apresentamos, a noção de pobreza sempre esteve ligada a uma insuficiência, revelando uma certa incompletude da condição material de um determinado grupo.

A inclusão de outros tipos de pobreza, a exemplo da pobreza cultural, pobreza de espírito, etc. poderia ampliar e enriquecer a discussão sobre a noção e incluir outros indivíduos que mesmo possuindo o básico para sua sobrevivência material, carece de uma dimensão imaterial que também faz parte dos direitos básicos para a plena realização de uma pessoa. A sociedade capitalista, em seu estágio atual, amplia a noção de pobreza à medida que reduz a sua compreensão ao aspecto socioeconômico e não inclui outras dimensões da vida humana. Uma reflexão filosófica sobre a pobreza, por mais difícil que seja, precisa ser possível e revela-se necessária.

Levando-se em consideração o conceito de pobreza elaborado por Amartya Sen, o pobre seria aquele que não tem acesso ao que é socialmente produzido, isso não só aumenta a massa de pobres ao incorporar pessoas materialmente abastadas, mas também ao incluir nesta categoria outros bens além dos bens materiais.

 

Referências

 

AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza. São Paulo: Boitempo, 2014.

 

COSTA, Alfredo Bruto da. Conceito de pobreza. Estudos de Economia, v. 4, n. 3, abr/Jun., 1984, p. 275-295.

 

PINZANI, Alessandro. “Vai trabalhar vagabundo”: retórica antipobre e aspectos normativos de uma teoria da pobreza. In: SILVA, Hélio Alexandre (ORG.). Sob os olhos da crítica: reflexões sobre democracia, capitalismo e movimentos sociais. Macapá: UNIFAP, 2017, p. 348-388.

 

SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.