A crítica à metafísica em Nietzsche
Rafael Augusto Neves Mazzoli
Graduando em Filosofia - Unisantos
Nietzsche opõe-se à tradição filosófica que caracterizava-se, para ele, por uma recorrente sistematização de conceitos abstratos – por meio dos quais se atingiria a verdade – e pela negligência em relação ao corpo – visto que as paixões e os interesses sensíveis seriam um entrave ao homem na busca pela verdade.
Nietzsche enxergava nesta tradição uma postura pueril por parte dos filósofos, visto que com todo seu empenho e seriedade na busca pela verdade – que seria, para eles, unívoca e inquestionável – acabavam por erigir monumentos metafísicos que excluíam as contingências da vida humana e direcionavam-se tão somente à racionalidade – em detrimento à sensibilidade.
Ainda no prefácio de Para além do bem e do mal, Nietzsche (2007, p. 29) diz que “[...] há sérios motivos para esperar que todo dogmatismo em filosofia, por mais solene e definitivo que se tenha apresentado, talvez não tenha sido mais do que uma nobre criancice e um balbuciar.”
Criancice e balbucio pois não seriam mais do que um primeiro momento, uma primeira tentativa – imatura, confusa, dependente do respaldo duma tradição supersticiosa que, por sua vez, carecia dum consolo racionalizado – de empreender a investigação da realidade e buscar compreendê-la. Contudo, nobre, pois, embora ainda contaminada pela superstição, já situava-se num passo à frente dela. Acerca disto, Nietzsche (2007, p. 30) diz que “[...] para gravar no coração da humanidade as suas eternas exigências, todas as coisas grandes devem vagar primeiro pela terra como carantonhas monstruosas e terríficas.”
Para Nietzsche, portanto, por mais nociva e enganadora, a tradição dogmática da filosofia não é, contudo, vazia de valor. Ela representa algo a ser superado, um degrau do qual se deve sair para que se atinja um novo patamar, um caminho do qual se deve desviar-se – por apresentar uma falsa sensação de segurança, de conforto e de garantia de chegada a um destino inexoravelmente alcançado pelo homem que o percorre – em vista de trilhar outro que, uma vez trilhado, apresenta-se não como um, mas como diversos caminhos, como um leque de possibilidades de número e intensidade variáveis, imprevisíveis, contingentes, a todo instante mutáveis.
Tendo em vista este caráter de possibilidade de superação no qual residiria o valor da metafísica dogmática, Nietzsche (2007, p. 30) diz:
Ingratos não sejamos para com ela, conquanto se deva confessar que o erro mais nefasto, mais persistente e mais perigoso até hoje cometido foi um erro dos dogmáticos, ou seja, a invenção do espírito puro e do bem em si, feita por Platão. No entanto, agora que este erro foi superado, agora que a Europa, liberta deste pesadelo, volta a respirar e usufrui, pelo menos, de um mais salutar sono, somos nós, cujo dever é precisamente a vigília, quem herda toda a força engendrada na luta contra este erro.
Para Nietzsche, a hegemonia do cristianismo (chamado por ele também de “platonismo para o povo”) havia possibilitado uma tensão que, embora historicamente manifestada timidamente, gradativamente foi alimentada e fortalecida, a ponto de ser “possível atirar agora aos alvos mais longínquos” com um “arco tão fortemente tenso”. (NIETZSCHE, 2007, p. 31)
Nietzsche enxergava nos filósofos desta tradição uma pretensão ingênua ou mesmo desonesta (para consigo mesmos) na elaboração de seus sistemas metafísicos por meio dos quais cada um buscou, segundo um método próprio, atingir e apreender a verdade sem levar em conta (ou sem explicitar) as condições pelas quais tais verdades se constituem como verdades. Ele diz (2007, p. 36): “De leve fui descobrindo o que até agora tem sido toda a grande filosofia. Nada mais que uma autoconfissão do autor, uma espécie de mémoires involuntárias e desapercebidas.”
Os filósofos partiriam, tal qual os místicos, duma “inspiração”, distinguindo-se destes por desenvolverem teses e argumentos menos ou mais bem articulados que justificassem e “provassem” a veracidade de tais inspirações, tais ideias cruas, primitivas. Estes filósofos, porém, ignoravam – ou mascaravam – as condições pelas e para as quais seus pensamentos eram engendrados e conduzidos, negando o perspectivismo que caracterizaria a pluralidade e as peculiaridades de seus sistemas metafísicos. Ao invés disto, buscavam universalizar as conclusões às quais chegavam.[1] A este respeito, Deleuze (1976, p. 49) diz:
O mais curioso nessa imagem do pensamento é a maneira pela qual o verdadeiro é, aí, concebido como universal abstrato. Nunca se faz referência às forças reais que fazem o pensamento, nunca se relaciona o próprio pensamento com as forças reais que ele supõe enquanto pensamento. Nunca se relaciona o verdadeiro com o que ele pressupõe. Ora, não há verdade que, antes de ser uma verdade, não seja a efetuação de um sentido ou a realização de um valor. A verdade como conceito é totalmente indeterminada.
Além da tradição especificamente platônica, Nietzsche explicita a ignorância e desonestidade que identifica noutros sistemas filosóficos que igualmente aspiravam à universalização de seus preceitos e conclusões. Nietzsche aponta como falso o imperativo estóico, segundo o qual se deve viver de acordo com a natureza, porquanto não se pode prescindir da sensibilidade e mesmo da racionalidade humanas. Isto porque não se pode tornar, tal qual a natureza, indiferente, livre de intenções e julgamentos, imparcial perante qualquer situação, uma vez que a decisão mesma de assumir determinada postura já exige um comprometimento e um direcionamento oriundo da intenção do próprio sujeito – intenção esta que deve ser constantemente renovada e reafirmada. Porém, os estóicos teriam querido, em realidade, não que se vivesse simplesmente segundo a natureza – esta natureza sendo modelo anterior aos homens e guardando a verdade que igualmente os antecederia –, mas que a natureza fosse uma natureza conforme o estoicismo. Ou seja, o estoicismo não partiria da natureza, mas a moldaria segundo os próprios preceitos, transformando-a em modelo máximo da sua doutrina e justificando neste modelo (inventado) sua própria moral.[2]
Nietzsche estende sua crítica também à modernidade, evidenciando a fragilidade de sistemas filosóficos que, cada um ao seu modo, postulavam certezas e pontos de partida inquestionáveis considerados imediatos que serviam de fundamento à metafísica. Tal é o caso de Descartes e Schopenhauer com, respectivamente, o “eu penso” e o “eu quero”.[3]
O “eu penso” não pode ser imediato, visto que se trata duma constatação que depende de dados anteriores a ela própria. Embutidas no “eu penso”, o filósofo tem acesso a afirmações que deve entender como problemas, afirmações difíceis de serem fundamentadas. A este respeito, Nietzsche (2007, p. 46) diz que tais afirmações problemáticas seriam:
que sou eu quem pensa, que tem de existir em absoluto algo que pensa, que pensar é uma atividade e o efeito de um ser considerado como causa, que existe um ‘eu’, enfim, que já está estabelecido o que se deve entender por pensar, que eu sei o que é pensar. Pois, se eu não estivesse já com ideias assentes sobre isso, como poderia decidir se o que está a acontecer não é talvez ‘querer’ ou ‘sentir’? Resumindo, esse ‘eu penso’ pressupõe que eu compare o meu estado momentâneo com outros estados que conheço já em mim, para estabelecer o que ele é.
Por esta própria necessidade de se comparar um estado momentâneo com outros já vivenciados, o “eu penso” não pode ser considerado imediato. E quanto às afirmações intrínsecas a esta, acessadas pelos filósofos, elas vêm a se constituir como questionamentos metafísicos insolúveis neles mesmos, exigindo uma investigação que faz cair por terra a pretensa certeza apresentada, levando-se em conta que o filósofo deve considerar as condições pelas quais se originaram tais conceitos e se trilharam tais linhas de raciocínio.
É preciso ressaltar que o que Nietzsche mais condena nos filósofos não é a busca pela verdade, ou mesmo o amor pela verdade. O grande problema, a seu ver, é o apego que alguns filósofos têm com suas verdades, a ponto de sacrificarem-se em todos os âmbitos e assumirem uma posição de verdadeiros militantes, ignorando que trata-se, pura e simplesmente, das suas verdades, e que não há razão alguma para estas serem também as verdades dos outros. Noutras palavras, o grande problema é o dogmatismo. Quanto a isto, Nietzsche (2007, p. 55) diz, dirigindo-se a filósofos não dogmáticos:
[...] sabeis perfeitamente que é indiferente que sejais vós quem tem razão e igualmente que nenhum filósofo teve ainda razão e que cada pequeno ponto de interrogação que colocais à frente das vossas palavras e doutrinas favoritas (e ocasionalmente à frente de vós mesmos) encerra uma veracidade mais digna de louvores que todos os vossos gestos solenes e argumentos invencíveis apresentados perante os vossos acusadores e juízes!
Para Nietzsche, ainda que os novos filósofos, filósofos não dogmáticos, venham a se apresentar como novos amantes da verdade, será próprio deles não querer que suas verdades sejam universalizadas e estendidas a todos; será próprio deles que tal universalização colida com seu orgulho e seu gosto.[4] Assim, “’bom’ deixa de ser bom quando dito pelo vizinho”.[5]
Nota-se que Nietzsche desloca – como já demonstrado por Deleuze anteriormente – o elemento central do pensamento da verdade para o sentido e o valor. Se antes a verdade era dada de fora, objetiva e absoluta, para Nietzsche a verdade passa a ser subjetiva e totalmente dependente da interpretação que o homem faz de si mesmo e de tudo aquilo que o circunda. É ele quem atribui um dado valor e um dado sentido a uma verdade que venha a ser constituída como tal, e sem que nesta haja a pretensão de abandonar sua validade momentânea e circunstancial em direção a uma cristalização abstrata que, no final das contas, se mostraria vazia – de sentido e de valor. Vazia de sentido e de valor como universal abstrato porquanto a verdade advém das atribuições de sentido e valor dadas pelo homem a determinadas combinações de elementos, estando estas combinações sempre em movimento – logo, a verdade revela-se efêmera.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução por Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, 90p.
NIETZSCHE, Friedrich W. Para além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução por Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2007, 228p.