O TEMPO E O ESPAÇO NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO
CEZAR AUGUSTO VIEIRA JUNIOR
Doutorando em Filosofia – (UFSM)
Mestre em Psicologia – (UFSM)
Bolsista CAPES
Introdução
Na busca da compreensão acerca da constituição do sujeito precisamos pensar, primeiramente, na questão da historicidade do ser humano. Isso significa dizer que ele é constituído através de sua história, mas não de uma forma isolada, pois ele também é parte do mundo e participa ativamente de sua construção em conjunto com a coletividade.
Em uma dialética entre a singularidade do sujeito e a universalidade do meio em que ele vive, Sartre propõe que o sujeito é universal devido à universalidade da história da humanidade, mas também é singular, devido à singularidade de seu projeto existencial. Por isso mesmo o sujeito deve ser estudado a partir desses dois fatores: universalidade e singularidade. Ele é universalizado pela sua época, ao mesmo tempo em que participa da produção dessa universalização ao reproduzir sua singularidade existencial.
Nessa perspectiva, o caro leitor pode perceber que sua subjetividade se constitui a partir das mediações que estabelece com o mundo e principalmente das relações de que tem vivências. Assim, sua gama de relações pode ser considerada bastante extensa, indo desde o grupo familiar na infância e os demais grupos sociais dos quais vier a participar, até experiências mais particulares, como a relação direta com o próprio corpo e a relação com o olhar dos outros.
A amplitude da abordagem que apresentamos aqui busca de fato situar o sujeito no mundo, entre outros sujeitos, e estabelecer a inter-relação que engendra, por um lado, o tecido social e a universalidade da história, e por outro, a singularidade desse sujeito inserido no mundo. Nesse sentido, convidamos você a nos acompanhar na discussão de dois aspectos dessas relações estabelecidas pelo sujeito, considerando que a partir delas é que as demais relações podem ser compreendidas: a relação com o tempo e a relação com o espaço.
O tempo: nossa história em andamento
Partindo do pressuposto de que a constituição do sujeito é uma totalidade em curso, ou seja, um projeto que se constitui gradualmente ao longo de sua vida, podemos perceber o enlace das ações humanas com a temporalidade. Assim, é produzida “uma síntese dialética das experiências passadas, presentes e futuras que definem os contornos de quem é o sujeito” (SCHNEIDER, 2011, p. 122).
A realidade é um processo histórico que está sempre em curso, por isso, ao mesmo tempo em que o ser humano produz a história, ele é produzido por ela. Tal proposição encontra amparo nas ideias de Marx e Engels, ao afirmarem que “as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias” (MARX; ENGELS, 2007, p. 36). Isso quer dizer que é a partir de nossas práticas cotidianas, individuais ou coletivas, que fazemos com que as coisas aconteçam em um determinado sentido e em uma determinada direção. É através do engajamento da pessoa no mundo e das relações que nele estabelece que a história se constitui. É essa leitura que Sartre faz, em Questão de método,dos escritos de Marx e Engels, com isso querendo ilustrar que não somos passivos diante da história e do mundo ao nosso redor, pois nossas ações participam e modificam a construção de nossa história e de nosso entorno.
Paul Ricoeur, em sua obra Tempo e narrativa, nos propõe que a história revela uma capacidade de refiguração do tempo através da ideia de sequência das gerações. Para o autor, pertencer a uma mesma geração significa estar exposto às mesmas influências externas, ser afetado pelas mesmas mudanças e pelos mesmos acontecimentos, dentro de um período determinado de tempo. Desse modo, as influências que recebemos e aquelas que exercemos constituem o caráter de “sequência” de gerações, dando encadeamento entre aquelas “bagagens” que recebemos e aquelas que transmitimos, movimentando a abertura de novas possibilidades. Por exemplo, você pode pensar nas suas experiências passadas e como elas moldaram, em certa medida, o modo como você entende quem é hoje. Essas experiências vieram de relações com pessoas e situações do passado, mas iluminam algo de seu cotidiano hoje. Da mesma forma, ao posicionar-se na atualidade, seja questionando esse passado ou aceitando-o passivamente, você abre outras possibilidades de experiência para as pessoas ao seu redor hoje, dando continuidade ao encadeamento.
A partir desse conceito, podemos relacionar o pertencimento a uma geração com o campo dos possíveis discutido por Sartre em Questão de método, o qual está vinculado à realidade social e histórica. Este campo diz respeito às diversas possibilidades no movimento de subjetivação e objetivação da realidade do meio circundante, ou melhor, refere-se ao movimento de apropriação, internalização e compreensão do meio em que o sujeito está inserido, e a consequente objetivação através da práxis, como uma devolução ao mundo daquilo que foi anteriormente apropriado.
Assim fica mais fácil visualizarmos como acontece o encadeamento de gerações, pois o movimento de subjetivação/objetivação, ou “apropriação/devolução ao mundo” ocorre em uma temporalidade que também é fortemente estruturada pela história. Dessa forma, não se pode imaginar o campo dos possíveis como indeterminação absoluta, já que o sujeito é uma parte ativa na construção do meio em que vive, e é a partir desse meio que posteriormente outros realizarão este mesmo processo. Nas palavras do filósofo francês: “é superando o dado em direção ao campo dos possíveis e realizando uma possibilidade entre todas que o indivíduo se objetiva e contribui para fazer história” (SARTRE, 1987, p. 153).
Se nossa realidade é construída historicamente, é possível afirmar que nossa subjetividade também é constituída assim, como um processo de relações do qual constantemente nos apropriamos. Por isso, é importante estabelecer como se dá nossa relação, enquanto sujeitos, com o passado, com o presente e com o futuro, tomando-os como intervalos dentro da passagem do tempo.
Sabemos que o passado trata das vivências e fatos que já aconteceram e foram apropriados pelo sujeito. O passado já foi, indicando um modo de ser, no sentido de que podemos dizer que éramos de um determinado jeito, gostávamos de certas coisas e outras não, fazíamos algumas coisas e evitávamos outras. Schneider, em Sartre e a psicologia clínica,aponta o caráter paradoxal da abordagem sartriana sobre o passado, pois ao mesmo tempo em que “somos nosso passado”, no sentido de que estamos impregnados pela nossa história e não podemos retornar e alterar concretamente os fatos que nos constituíram, também já “fomos este passado”, no sentido de que podemos tomar distância de quem éramos, de modo reflexivo, buscando ser diferentes a partir das possibilidades que se abrem em direção ao futuro. Em outras palavras, podemos olhar criticamente para este passado que nos constituiu, e mesmo que não seja possível de fato alterá-lo, podemos atribuir novos significados às experiências passadas, à luz de nosso presente.
A possibilidade de mudança e abertura para a experiência ocorre no presente. Se considerarmos o passado como totalizado, então o presente pode ser tido como o processo de totalização, um movimento constante em busca de ser, apesar de nunca alcançar tal condição. Isso porque, no momento em que ele se concretiza, deixa de ser presente e assume a condição de passado.
O presente não é nada além de um instante, pois é um constante movimento entre o passado e o futuro, entre o que já foi e aquilo que ainda vai ser. Dessa forma, o processo de constituição do sujeito, por ser dialético, não pode ser compreendido somente como um produto do passado, pois acontece na relação entre o passado concretizado e a abertura para as possibilidades trazidas pelo futuro. Ilustrando esse modo processual da realidade humana, Sartre escreve em O ser e o nada: “Enquanto presente, não é o que é (passado) e é o que não é (futuro). Eis-nos, portanto, remetidos ao futuro” (SARTRE, 2014, p. 177).
Se o passado tem esse caráter paradoxal entre a rigidez constituída e a possibilidade de ressignificação, se o presente é a mediação entre o que está dado e o que está por vir, o futuro configura-se justamente como as possibilidades que se apresentarão. Assim, ele é o movimento em direção ao horizonte do tornar-se, com a condição de ter-de-ser, mas na medida em que também é possível não o ser. Em outras palavras, o futuro é aquilo quebuscamos, que projetamos, mas que, ao mesmo tempo, podemos não alcançar, podemos desviar de seu rumo, pois ele ainda não está dado. “O futuro é, assim, um nada que define o ser do homem. O futuro é o que ainda não sou na busca de ser” (SCHNEIDER, 2011, p. 126, grifo da autora).
Porém, o futuro não é um ponto definido em nosso caminho, o qual um dia atingiremos. Ao contrário, ele nunca se deixa alcançar, pois quando chegarmos àquilo que buscamos ou projetamos, tornar-se-á passado. Não é o futuro que se realiza, mas o projeto existencial na sua transcendência, que é designado por esse futuro e se constitui em relação a ele. Por isso, o ser humano não pode ser considerado completo, pois ele é uma totalização que está sempre em curso, ou seja, uma busca constante pela realização, um vir-a-ser.
Diante disso, somos não apenas o produto dessa dinâmica temporal, mas também seu produtor e é através de nossa constante totalização através da história que podemos nos constituir como sujeitos. Sartre considera que para que o ser humano tenha uma história, o curso do mundo deve modificá-lo ao modificar-se, e que ele mesmo se modifique, modificando também o mundo. Em suas palavras: “O futuro é incerto, somos nosso próprio risco, o mundo é nosso perigo. Não poderíamos existir em nenhum momento para nós mesmos como uma totalidade” (SARTRE, 2002, p. 296).
O espaço: nosso entorno e além
Mas perceba, caro leitor, que para além de qualquer história possível, precisamos pressupor um espaço que será historicizado, ou seja, transformado por essa história através de mudanças sociais, econômicas e políticas, como explica Koselleck em sua obra Estratos do tempo. Além do que foi discutido acerca da temporalidade, o espaço aparece como condição de possibilidade para qualquer processo de subjetivação. É na relação com nosso entorno que engendramos nosso projeto existencial.
A primeira condição de existência de um sujeito se faz através da sua relação com o espaço. Todos nós nascemos em um determinado momento histórico e em certa sociedade. Também fazemos parte de um contexto social que invariavelmente nos remete às condições materiais que nos rodeiam. Assim, será sobre as condições dadas (economia, política, cultura) que o sujeito vai se constituir, movimentando-se, superando-as em direção aos possíveis, em direção ao que ainda não é.
Essas condições não são escolhidas por nós logo de início, pois nascemos em seu meio. Porém nos apropriamos singularmente delas em nosso projeto, como aspectos definidores de nossa subjetividade. Para Schneider, por exemplo, o importante é como compreendemos essa dialética entre a objetividade e a subjetividade. Ou seja, como nos apropriamos da materialidade do mundo ao nosso redor para delinearmos quem somos, para logo em seguida agirmos à nossa maneira sobre este mundo.
Pensar a relação do espaço com a constituição do sujeito diz respeito diretamente às condições dadas que configuram uma espacialidade na qual ele é inserido no início de sua vida. Mas isso não fica resumido apenas ao meio que o circunda, pois engloba a totalidade das condições naturais do ambiente, bem como os aspectos puramente humanos e históricos, esses criados pela ação humana.
Koselleck chama de meta-históricas as condições de possibilidade da história que fogem à influência humana, mas que acabam se transformando em desafios a serem superados pela nossa atividade. Aqui é possível incluir a terra, o mar, as montanhas e as regiões costeiras, que estão concretamente já localizados, e cabe à humanidade traspor os desafios apresentados por esse meio determinado. O resultado dessa movimentação humana nós chamamos de história. Portanto, a disponibilidade dessas condições espaciais naturais deve ser considerada como condição de possibilidades de ações.
Dessa forma, a prática do ser humano sobre o mundo se configura como uma parcela importante da construção histórica. E isso se apresenta através dos espaços constantemente modificados pela atividade humana que, por determinadas circunstâncias, são forçados a inventar, se apropriar ou ocupar para poderem viver (Cf. KOSELLECK, 2014). Servem como exemplos as rotas de comércio ou migrações que, a partir do seu movimento, transformam o ambiente abrindo novos espaços. Assim, “as condições geográficas meta-históricas dos espaços de ação humanos se modificam, dependendo de como estão sujeitos ao domínio econômico, político ou militar” (KOSELLECK, 2014, p. 81).
Tendo em vista a relação do sujeito com o espaço, percebe-se uma aproximação de pontos importantes acerca da cultura material. Esse tema é discutido por Peter Burke. em sua obra O que é história cultural?, onde o autor reflete sobre a nossa relação com alimentos, vestuário e habitação, além da história do consumo, estimulado pelo desejo de bens através da exploração da publicidade. Esta abordagem diz respeito não aos objetos especificamente, mas aos significados e à relações que desenvolvemos com eles e o que passam a representar em nossa vida. Por exemplo, como se configura a ideia de habitação ao longo da história, como são definidos espaços públicos ou privados e como nos relacionamos com eles. Isso para destacar os aspectos mais concretos, ou objetivos, da espacialidade.
Discutindo as questões que concernem aos espaços de ação humanos, sejam individuais ou coletivos, cabe ressaltar que sempre haverá uma relação direta com uma dimensão temporal, através da qual isso será vivenciado. É nesse sentido que a perspectiva contemporânea sobre uma aceleração do tempo e uma diminuição do espaço explica que “o mundo reconfigurado pela ciência, a técnica e a indústria conhece processos de aceleração que modificam radicalmente as relações espaçotemporais, tornando-as mais fluidas” (KOSELLECK, 2014, p. 86). Essa é uma característica que ilustra especialmente nossa contemporaneidade sob o neoliberalismo, onde a ênfase na velocidade e eficiência tenta destacar o indivíduo de sua coletividade e de seu contexto sócio-histórico, como se ele pudesse ser individualmente responsabilizado por seus sucessos ou fracassos. Tal concepção rompe com o processo dialético da construção da subjetividade justamente por sua ênfase individualizante.
Conclusão
A discussão sobre a relação com o tempo e o espaço na constituição do sujeito reafirma sua dialética com o meio no qual estamos inseridos. Isso significa que o movimento de interiorização/exteriorização é parte fundamental de nossa construção e modificação desse meio, que não é imune à ação humana.
Porém, mesmo esse encadeamento não acontece por si só, sendo na verdade o reflexo da constante totalização do projeto existencial de cada sujeito e do entrelaçamento dos projetos de cada ser humano, resultando assim na construção do tecido social e da transformação do espaço físico. Esse meio que foi constituído dará suporte para a totalização de novos projetos, que por sua vez, através da práxis, resultarão em novas transformações na história.
Esse é um movimento que acontece no mundo, a partir do engajamento do sujeito no mundo. A construção/transformação não é o resultado de uma abstração pura, encerrando na subjetividade a compreensão da realidade. Evidentemente a subjetividade é uma parte importante nesse movimento, mas ela em si mesma não pode dar conta do mundo. Do mesmo modo, apenas a materialidade do mundo não pode explicar como alguém chega a ser como é, pois exclui o aspecto dinâmico característico da ação humana.
Assim, caro leitor, podemos concluir que o sujeito não é simplesmente um produto de sua história ou o reflexo do seu entorno. Tampouco um ponto final e inerte na encruzilhada da história com o mundo. O sujeito é resultado dessa dialética incessante que permite que o próprio passado individual seja posto em questão, na perspectiva de ressignificar e transformar em vias de um futuro vindouro, e que o espaço ao redor seja modificado a partir de suas possibilidades.
Pensarmos sobre o tempo e o espaço na constituição do sujeito é destacar alguns dos aspectos mais básicos desse processo. Talvez uma noção “neutra” de “tempo” ou de “espaço” não teriam muito a contribuir na compreensão do sujeito. É por isso que essa abordagem se volta para um “tempo humano”, permeado por memórias e significados, e para um “espaço humano”, marcado e transformado pela ação dos povos.
Referências
BURKE, P. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
KOSELLECK, R. Estratos do tempo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
RICOEUR, P. Tempo e narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2011 (3 v.).
SARTRE, J.-P. Questão de Método. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores).
______. Saint Genet: ator e mártir. Petrópolis: Vozes, 2002.
______. O idiota da família. Gustave Flaubert de 1821 a 1857 Porto Alegre: L&PM, 2013. (Vol. 1).
______. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 2014.
SCHNEIDER, D. Sartre e a psicologia clínica. Florianópolis: UFSC, 2011.